segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Tempo de sombra e assombrações

— O amor não deve pedir — continuou — nem tampouco exigir. Há de ter a força de chegar em si mesmo à certeza e então passa a atrair em vez de ser atraído. 

Trecho de Demian, do Hesse.

A chuva cai, fina, e parece que o céu inteiro se desprende em pequenas gotas e desaba sobre a minha cabeça. Partículas de água multiplicadas por medo de peso infinito. Os últimos dias vestiram-se de cinza e de dúvidas, de apelos e de sono, muito sono. Mas é preciso sair da inércia. Assombrada por um futuro muito próximo e novo, recém-nascido. E sem pena sou interpelada por vozes de fora para tomar decisões sobre o que para mim está na geladeira esfriando. Não há tempo nem espaço agora para nada disso. Atire facas no meu coração como num espetáculo circense; ainda assim não terei tempo. Me deixa sombra, e veremos depois o que sobra. Minha mente está em se vou conseguir dormir e levantar amanhã, se vou conseguir sobreviver sã (e somente sã) à próxima semana. Se a maré de novidades não vai me carregar para oceanos sombrios e distantes. Tormenta dentro de mim, para onde me levará? Permanecerei suspensa no ar? Ou vou desabar? Leis do amor, da sanidade e da física, tenham piedade de mim. 


sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

Ahhhhh, o Natal!


Passei uns dias em Niterói/Rio e pude participar mais uma vez em vida do espetáculo tragicômico que antecede o Natal. Milhares de pessoas desesperadas pra dar conta da lista de presentes. Aquela multidão insuportável nos shoppings. Crianças se jogando no chão e dando performances histéricas dignas de um Oscar. Pais à beira de um ataque de nervos. Vendedores mal-humorados from hell. E eu desnorteda, esbaforida, com sede, desesperada e perdida em meio às multidões, sem saber pra que lado eu deveria ir.

Mãe, pai, sobrinhos, namorado, amigos, tanta gente que eu queria presentear! O problema é que além do dinheiro curtíssimo, eu sou uma péssima escolhedora de presentes. Costumo dar de presente o que eu gostaria de ganhar, e bem, meu gosto não é lá muito parecido com o de ninguém que eu conheça. Ou então o dinheiro vai todo naquele presente fofinho que é a minha cara a cara do fulano e lá se vai o orçamento inteiro por água abaixo.

E eu me pergunto por que eu estou tão preocupada em presentear os outros se nem Natal eu vou ter esse ano. Passarei da forma mais estranha possível: num navio de produção e armazenamento de óleo no meio do oceano. Bom, antes no meio do oceano que do outro lado dele. Apesar do que era bem interessante viver um Natal de verdade, com neve e pinheirinhos naturais, que os alemães arrancavam diretamente das florestas para a festa e jogavam fora depois. Acho lamentável como o homem se utiliza da natureza como de um buffet de self service. Como se ela estivesse ali à disposição, com o dizer "tire o que quiser!". Aqui em Cabo Frio o prefeito explora é o dinheiro público mesmo e gasta milhões em árvores artificiais megalomaníacas. Acho uma grande sacanagem ecológico.

Voltando aos presentes, a vontade que eu tinha era de dar um bombom pra cada um, com o seguinte dizer:
Lembrei de você. Não posso comprar nada melhor. Desculpe a pobreza e a incompetência. Um Feliz Natal.
Bombom não, estão todos gordos (eu inclusive). O Papai Noel, então, nem se fala, que além de gordo ainda anda por aí meio pirado passeando pelos trópicos de gorro e bota. Humm, que tal então uma folha de alface bem verdinha? Nada mais light. Ou melhor, um trevo, aí fica uma coisa bem irlandesa, chique. Acho que se alguém ganha uma folha de mim vai me odiar mais do que se eu não tivesse dado nada, porque essa história de "o que vale é a intenção" a gente sabe que é mais fake do que neve tropical.

Voltando à minha realidade capitalista e nada vegetariana, lá fui eu com a minha listinha, e ao final de 5 horas de shopping só tinha conseguido comprar presente pra 3 pessoas: um sobrinho, uma amiga e eu (sim, eu, a única pessoa que eu costumo acertar na hora de presentear merece ser valorizada). Não por hierarquia, mas por falta de imaginação mesmo, pois só tive 3 ideias e nada mais.

Enfim, muito estresse e algumas bolhas depois, a missão foi abortada e tive que voltar pra casa. Sem dinheiro e sem presentes. Desculpa, pessoal, mas vejam se vocês me tiram como exemplo: presenteiem a si próprios. Poupar o trabalho dos outros também é uma forma muito nobre de se desejar um "Feliz Natal" que vale mais do que muita gravata e meia que é dada por aí. 

domingo, 11 de dezembro de 2011

"A felicidade é amor, só isto."

"Quanto mais envelhecia, quanto mais insípidas me pareciam as pequenas satisfações que a vida me dava, tanto mais claramente compreendia onde eu deveria procurar a fonte das alegrias da vida. Aprendi que ser amado não é nada, enquanto amar é tudo (...).

O dinheiro não era nada, o poder não era nada. Vi tanta gente que tinha dinheiro e poder, e mesmo assim era infeliz. 

A beleza não era nada. Vi homens e mulheres belos, infelizes, apesar de sua beleza.

Também a saúde não contava tanto assim. Cada um tem a saúde que sente. Havia doentes cheios de vontade de viver e havia sadios que definhavam angustiados pelo medo de sofrer.

A felicidade é amor, só isto.
Feliz é quem sabe amar. Feliz é quem pode amar muito.
Mas amar e desejar não é a mesma coisa.
O amor é o desejo que atingiu a sabedoria.
O amor não quer possuir.
O amor quer somente amar."

Hermann Hesse

Sábias palavras do Hesse. Creio que se atingíssemos a sabedoria de amar com desprendimento seríamos muito mais felizes. Vejo com tristeza tanta gente perdida. Vejo cada dia mais que o  modelo de "felicidade" que vem sendo espalhado por aí é totalmente equivocado. Um bom trabalho ajuda. Dinheiro também. Beleza? Claro. Saúde? Obviamente. Uma pessoa ao seu lado e boas amizades idem.

Mas o que vai determinar a sua paz de espírito e bem-estar na vida é algo independente de tudo isso. É algo que vem de dentro, e que mesmo na falta de um bom trabalho, beleza, dinheiro, saúde, uma pessoa ao lado e boas amizades vai brilhar e iluminar a quem está à sua volta. Você veio sozinho ao mundo e sairá sozinho dele. É sua responsabilidade fazer o melhor dessa combinação de talentos e defeitos que te tornam quem você é, e de mais ninguém. E se tiver que aprender apenas uma coisa pra que essa existência valha a pena, que seja a amar.

Somos ensinados a esperar do outro, a responsabilizar o outro pela nossa (in)felicidade; a amar a quem nos ama. A culpar e a humilhar quem nos ama mal. Ora, essa sociedade de tantos que se dizem cristãos, o que fizeram com o ensinamento de Jesus de amar a TODOS? TODOS para os leigos inclui também quem não te ama. Quem não te retribui o amor. E ainda assim dar a outra face e estender a mão nas dificuldades. E isso não tem nada a ver com falta de amor próprio. Quem nutre o amor próprio de atitudes alheias está fadado ao fracasso. O amor próprio é responsabilidade sua, e o amor alheio está fora do seu controle.

Mas ainda assim, ame e o seu amor retornará milhões de vezes mais forte. Se eu tivesse o direito de dizer apenas uma frase pro mundo, e que ela fosse profundamente compreendida e ouvida por cada ser humano, ela seria: o amor compensa.

 "Love is not consolation. It is light." [Friedrich Nietzsche]

quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

A fera (ou o homem?) da autocrítica

"Com nosso Lobo da Estepe sucedia que, em sua consciência, vivia ora como lobo, ora como homem, como acontece aliás com todos os seres mistos. Ocorre, entretanto, que quando vivia como lobo, o homem nele permanecia como espectador, sempre à espera de interferir e condenar, e quando vivia como homem, o lobo procedia de maneira semelhante

Por exemplo, se Harry, como homem, tivesse um pensamento belo, experimentasse uma sensação nobre e delicada, ou praticasse uma das chamadas boas ações, então o lobo, em seu interior, arreganhava os dentes e ria e mostrava-lhe com amarga ironia o quão ridícula era aquela nobre encenação aos seus olhos de fera, aos olhos de um lobo que sabia muito bem em seu coração o que lhe convinha, ou seja, caminhar sozinho nas estepes, beber sangue vez por outra ou perseguir alguma loba. 

Toda ação humana parecia, pois, aos olhos do lobo horrivelmente absurda e despropositada, estúpida e vã. Mas sucedia exatamente o mesmo quando Harry sentia e se comportava como lobo, quando arreganhava os dentes aos outros, quando sentia ódio e inimizade a todos os seres humanos e a seus mentirosos e degenerados hábitos e costumes. Precisamente aí era qua a parte humana existente nele se punha a espreitar o lobo, chamava-o de besta e de fera e o lançava a perder, amargurando-lhe toda a satisfação de sua saudável e simples natureza lupina."

O Lobo da Estepe (1927), Hermann Hesse

Me identifico totalmente com o trecho acima. Há dias em que a pessoa exemplar e a louca à margem que vivem em mim brigam quase o tempo inteiro. Eu sou, de fato, o meu inimigo mais implacável. Eu sei me menosprezar, me tirar do foco, me culpar com  um discurso mental enlouquecedor, me por fraca e mais fraca nos momentos onde não tenho como ir mais fundo, mais baixo que o chão.

Eu sou a tesoura que corta a corda. Eu sou a bota que pisa os dedos que seguram o corpo pesado à beira do abismo. Me pego a pensar em situações das quais não tenho controle algum como uma febre. Me deixo viciar em situações que me fazem mal, só pra me criticar mais um pouquinho depois. Não sei se isso tudo é culpa de alguma substância que falta ou que sobra, ou se vem de fora pra dentro, se é praga divina ou força do acaso. Mas prefiro dizer que a culpa é toda minha, porque bem, faz parte da minha natureza de carrasco dual da autocrítica.

Hoje me peguei nesse ciclo e sabotei a mim mesma. Estraguei meus planos de arruinar meu dia (ou pelo menos parte dele - a tarde já havia ido por água abaixo) e com um esforço descomunal desviei a atenção pra coisas mais saudáveis e menos destrutivas. Coisas que só a pílula mágica do autoconhecimento pode nos proporcionar, senhoras e senhores. A verdade é que só na autocrítica posso me melhorar, mas acho que ainda não acertei a mão no tempero amargo do autojulgamento.

Então no meio dessas fugas e descaminhos me percebi só – e ser só não é só ruim. Senti um prazer enorme em caminhar por aí sozinha. Acabei o dia com uma vontade de me fechar numa bolha com as minhas músicas que ninguém gosta, com os meus livros que só eu leio, com as minhas piadas das quais só eu rio, com as minhas filosofias nas quais só eu acredito, e dar as costas pro que restasse do mundo todo.

Esse mundo que me eu amo pouco e mal. Esse quebra-cabeça do qual sou pecinha disforme, e que sempre vai entrar em atrito com a minha personalidade deveras esquisita. E acho que quando o mundo não interferir mais, aí sim vou gostar de mim de verdade. Aí o crítico feroz talvez fará as pazes com aquela que vive à sombra do bicho papão chamado o-que -se-deve-ser-quando-crescer.

[Sei que eu não sou tão única assim, mas hoje me deixa achar que eu sou. Não me critique - eu já fiz isso por você.]



terça-feira, 29 de novembro de 2011

Minha Patagônia de cada dia

Estou eu aqui, nesse mesmo computador, com um coque torto na cabeça (quem tem tempo pra pentear o cabelo?), com uma pilha de coisas pra fazer, rodeada por um caos completo de roupas e livros. Naqueles dias de almejar desesperadamente um pouco de paz e todos ironicamente acordarem falantes, eloquentes e precisarem de uma longa conversa, de soluções, de contar piadas. E eu aqui prestes a surtar de vez. Telefone então eu nem atendo ouço tocar. E nessas horas a gente pensa: por que eu não estou no topo de uma montanha de gelo na Patagônia??? Vendo então se escrever me põe de novo em órbita, antes que alguém abra a porta com um novo discurso infeliz.

Escrever pra mim é coisa muito séria, é terapia. Fiquei muito tempo sem escrever como que num luto, numa longa pausa de mudez. Acontece que sem escrever nem eu mesma sei identificar quem eu sou. Como diz o Hesse, “somente a si mesmo pode cada um interpretar-se”. Só que eu não consigo me interpretar muito bem sem me ler no papel. Essa é a chave que abre a porta do meu inconsciente pra mim mesma. Sem escrever eu me perco na multidão.

Apresar de escrever pra mim, confesso que fico bem feliz quando alguém me aborda nas ruas ou nas internets da vida pra dizer que é leitor do meu blog (apesar de achar mesmo que a maioria tem preguiça desses textos tão grandes). Olho pra essa pessoa com alegria e com uma certa dose de preocupação: sei que ela me conhece bem, que aqui exponho esse universo íntimo que preciso muitas vezes sublimar no dia-a-dia. Me sinto despida, mas aliviada.

Sinto também que só quem me lê sabe realmente quem eu sou. Não que eu seja tão espetacular que todos precisem me conhecer, longe disso! Mas sinto que tenho algo a oferecer - estranha certeza – nem que seja o ato de fazer uma ponte a grandes autores. Queria eu poder ler cada pessoa, ou pelo menos algumas delas! O ser humano, esse experimento único e insubstituível da natureza. Aqui ofereço a vantagem ou desvantagem de poderem “ler meus pensamentos”, literalmente e for free. Goste você ou não, esse caos comum aí sou eu. Fuja a tempo. Ou não.

Voltei a escrever numa situação meio mágica, misteriosa. Se, como diz Kundera, cada existência tem a sua própria temática, a minha vida seria feita de eventos mágicos assim. Pois bem, num belo dia estou num estúdio de amigos em Juiz de Fora e entra um senhor alto, negro, de voz baixa (quase um sussurro), e começamos a conversar. E ele simplesmente começa a contar a minha vida pra mim com detalhes! Ah vá! Ele nunca tinha me visto ou ouvido falar de mim antes! Seria assustador se eu não estivesse acostumada com coisas loucas assim. Pois bem, parecia que ele tinha lido a minha biografia que nem escrita ainda foi. E uma das coisas que aquele senhor me disse foi: “Você gosta de escrever. Você precisa voltar a escrever. Vai te fazer bem.”

Ele não quis dinheiro ou coisa alguma pelo que disse. Saiu da mesma forma que entrou naquela sala: silenciosamente, como uma brisa leve. E me deixou aquele conselho precioso. Desde então voltei a escrever e acabei criando o blog. E desde então sinto que cheguei mais perto de mim, dessa mistura de leituras, ensinamentos e pensamentos que tecem meu imaginário interior, e sinto que consigo lidar melhor comigo mesma e com os outros.

Ufa, acho que consegui organizar meus pensamentos. Agora sim acho que posso (re)começar meu dia. Não que eu tenha desistido da ideia da Patagônia. Em breve estarei lá, no topo da tal montanha de gelo, longe do falatório inconveniente de cada dia, em total silêncio (pinguins, não se atrevam!). Mas por enquanto vou levando com meu caderninho e caneta/computador, contando pra mim, pra Deus e pro mundo quem eu sou. Porque essa voz eu não quero voltar a calar tão cedo. E porque cada um tem a Patagônia que lhe cabe.

Quer trocar, amigo?



segunda-feira, 28 de novembro de 2011

Poeminha



Me deixa quietinha
Caixinha
Presente de não abrir

Coração embrulhado
Com todo o cuidado
Em plástico-bolha
Pra não se ferir

Tampinha fechada
Alegria guardada
Pro que há de vir

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

Um mês, uns meses e um dia

E ontem fez um mês. Se fosse um bebê, ainda não falaria. Se fosse um emprego, estaria recebendo o primeiro salário. Se fosse de espera, seria muito. Se fosse de vida, seria pouco. O que dizer de um relacionamento? 

Um relacionamento não começa num belo dia, como um nascimento ou o primeiro dia no trabalho. E os meses atrás desse mês? Na verdade há muito mais. Na verdade foi quase o ano inteiro. Acho que foi desde abril, mais ou menos. Ainda nem era nada, mas acontece que eu sempre soube. Sabe aquela certeza? Então. Essa mesma certeza que quando tudo desandou me fez voltar e insistir mais um pouquinho, e dar outra chance, e dar mais um passo. Logo eu que não sou de voltar atrás.

Junte todos os conselhos e opiniões boas e más: minha certeza é maior do que tudo isso. Se vocês pudessem sentir por mim iam entender. E mesmo que alguns conselhos estejam certos e acabe tudo errado, eu já sou feliz e grata por ter sido tão feliz ao lado dele nesse um mês oficial e nos extra-oficiais também. Por cada segundo em que me senti tão bem.

Por cada dia em que acordei e quis dormir mais um pouquinho só pra ficar mais tempo deitada ali, sem pensar em nada, com ele, sendo feliz, em paz. A paz das conversas bobas, das tardes de risos infinitos, dos olhares, dos beijos a toda hora, do sentir que nada lá fora importa porque ali do meu lado eu tenho tudo o que eu preciso.

Essa paz não vem de qualquer pessoa, não da mais bonitinha, nem daquela bem-sucedida e boazinha que mora logo ali. É maior do que tudo isso. O que vem dele pra mim faz dele o melhor de todos. Então eu dei uma pausa na racionalidade e resolvi ser simplesmente feliz sem planejar muito; e isso significa estar triste tantas outras vezes.

Por mais que por vezes eu queira matar, enforcar (literalmente), encher de beijos ou pegar o próximo ônibus pra Niterói. Eu estou agindo pelos sentidos e seguindo uma certeza cega de que o melhor não é óbvio e arcando com as consequências de tudo o que isso implica. E enquanto compensar e a certeza estiver lá, eu farei todos os esforços do mundo.

E hoje faz mais um dia. Ou melhor: um mês, uns meses e um dia.
Escolhi pra ilustrar meu texto essa estátua imensa e impressionante de Lima, Peru, chamada "El Beso". Em todos os bancos e muros do parque, localizado no bairro de Miraflores (onde era meu hostel), há trechos de poesias de autores peruanos. De tirar o fôlego! 

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

A escova e o esquecimento

Laura enfia na mochila algumas roupas amassadas. Pega a primeira blusa que vê pela frente, a calça jogada no sofá. Mais duas ou três peças de roupa. É, deve dar. Enquanto arruma o microcosmos de caos que levará nas costas pelos próximos dias, meio que anestesiada, inicia consigo mesma um diálogo mental, procurando se convencer do necessário.

- Medo de sofrer? Pra quê?! Eu tenho a capacidade de me reerguer e começar de novo. E como tenho! Sei ligar e desligar o botão do sentir quando me convém. Sei usar o narcótico natural do distanciamento, do sumir pra qualquer lugar pra me encontrar de novo, renovada. Eu sei esquecer.

Enquanto tenta acreditar no que diz e repete a si mesma, Laura procura a escova. Revira a montanha de roupas emboladas no armário, os livros pelo chão. Sabia que devia ter arrumado o quarto antes. Mas se perdoa logo em seguida sabendo que não tivera forças; que nos últimos dias fora assaltada pelo desespero, e vê que tivera trabalho demais tentando se manter sã e respirando pra tentar arrumar qualquer coisa do lado de fora dela mesma.

Pensa no trabalho que dá pegar o caminho errado. Às vezes seria preciso ter a humildade de reconhecer que, por mais que ela almeje, certas coisas não são para ela. Grandes riscos, montanhas-russas emocionais, coisas meia-boca, decisões meio-acertadas, longas pausas de silêncio; não, nada disso era para Laura. Ela se irrita com a falta de juízo e de escova.

Tateando atrás da pilha de livros ela acha fotos antigas. Aquelas pessoas, aqueles momentos trazem lembranças mal-vindas do tanto de estrada que ela já havia percorrido. E muita lembrança cansa, enjoa. Laura percebe então que já havia tido experiências demais, e com isso acabou por desenvolver a felicidade ou a infelicidade de prever. 

Constata então que não se trata mais de medo, mas de preguiça. Já tinha vivido coisas demais para o seu gosto; queria apagar metade daquelas memórias. Repeti-las seria viver duas vezes, e uma vida só já é coisa demais.

Tantas experiências repletas de inutilidade! Tanto e tão pouco. Montanhas de migalhas aglomeradas, e migalhas são para ratos. Como pode o ideal de felicidade ser maior que a felicidade em si? A velha fábula da felicidade que é contada e recontada milhões de vezes e envolve a realidade em névoa.

Laura decide então esquecer as fábulas. Esquecer todas as coisas inúteis. Deixar a tela branca tomar conta. Olha para o seu próprio rosto refletido no espelho e brinca, apática, de não saber quem ela é. Olha seus traços como se nunca antes os tivesse notado, e sente estranheza. Percebe que, se tinha permanecido jovem, não fora por milagre ou resistência, mas sim pela enorme capacidade que tinha de esquecer. Que o riso leve das crianças é fruto das poucas memórias que carregam.

Lembra-se então, de repente, de quando havia visto a escova pela última vez. Vai até o banheiro e depara-se com ela onde sempre estivera e deveria estar: em cima da pia. É, deve ser preciso esquecer do caos para se lembrar do óbvio, pensa, rindo para si mesma.

Joga a escova na mochila, coloca a mochila nas costas e dá as costas para o seu quarto. Um quarto de hora e está na estrada. É uma nova jornada começando. Ela está quase leve, leva pouco peso nos ombros e promete observar as placas com atenção. E repete para si mesma mais uma vez, para lembrar: eu sei esquecer.

The Persistence of Memory by Salvador Dali


sexta-feira, 11 de novembro de 2011

Confesso!


“Mas cada homem não é apenas ele mesmo; é também um ponto único, singularíssimo, sempre importante e peculiar, no qual os fenômenos do mundo se cruzam daquela forma uma só vez e nunca mais.”*

Vi o post “Confesso” no blog da Nivea Sorensen, cheio de ideias legais, e me inspirei mais uma vez. Tenho muitas “confissões” pra fazer, mas selecionei 10 bem leves e dizíveis, mas não menos pessoais e esquisitas. Nesse mundo tão massificado, acho interessante revelar, mesmo sendo a mais banal das besteiras, aquilo que possivelmente te torna um ser único em meio a essa multidão.


#1. Às vezes eu chamo as pessoas puramente pelo prazer de chamá-las. Por uma inquietação em mim, sei lá. E como não tenho nada pra falar, quando elas respondem invento rapidinho um assunto, que quase sempre convence. Mas haja agilidade na criatividade pra não ser desmascarada! Tá, acabou meu segredo agora. ¬¬

#2. Essa quem me conhece bem, sabe: quando eu penso em algo ruim, que pode ser algo costrangedor que eu tenha feito ou simplesmente algo que poderia dar errado, falo “eu quero ir embora” ou “quero ir pra casa”. Não tem um único dia em que eu não repita isso algumas vezes. Com o tempo a frase passou a ser traduzida pro alemão e respondida pelo meu então namorado com um “A sua casa é aqui.” Há, ele estava errado.

#3. Odeio falar no telefone, não sei o que dizer ao telefone, acho um saco barulho de telefone. Atender ligações de seja-quem-estiver-do-outro-lado-da-linha é algo que me irrita e me deixa ansiosa pra desligar logo. Portanto não me ligue, deixe mensagem no Facebook. :)

#4. Durmo há uns 4 anos com meu ursinho ecologicamente incorreto comprado na Bolívia, o Lhamito. Ele é feito de couro de alpaca (pobre alpaca!) e por isso é 100% fofura. Love it anyway! <3 Ah, eu já arranquei uma orelha dele no desespero de um voo, mas esta já foi devidamente costurada no lugar. 

#5. Quando morava na Alemanha, acompanhava todos os reality shows de casting possíveis e imagináveis: Germany’s Next Topmodel, America’s Next Topmodel, Popstars!, DSDS e por que não aqueles bem nasty da MTV tipo Jersey Shore. O vício começou simplesmente porque esses eram os únicos programas que eu entendia por serem em inglês, e a legenda em alemão de quebra me ajudava a aprender esse idioma muito louco. Depois virou sem-vergonhice mesmo.

#6. Adoro sair all by myseeeeelf e muitas vezes dispenso a companhia das pessoas porque acho mais graça em fazer as coisas exatamente do jeito que eu quero, ou seja, sozinha. Não sou daquelas pessoas que precisam de companhia pra tudo, muito pelo contrário; sou uma boa amiga de mim mesma. Mas confesso que na Alemanha fazer coisas sozinha virou rotina e ficou chato, muito chato.

#7. Poderia descrever o melhor sentimento de liberdade do mundo como aquele de estar na estrada, olhar a paisagem passando pela janela e pensar em nada. Só na estrada eu me sinto em casa.

#8. Poderia comer cheese nachos, daqueles só com queijo, salsa e guacamole, todos os dias da minha vida. E pra acompanhar um bom mojito. A gente não é gorda à toa, viu?

#9. Sou espírita mas não tenho paciência pra deixar nada pra outra vida. Sinto saudades doloridas de pessoas e nunca ficarei de bem com o destino até que ele nos una de novo na mesma existência.

#10. Minha vida é e sempre foi repleta de eventos sobrenaturais, premonições, visões e milagres. Não sou a única, eu sei, mas é engraçado que na Europa eu nunca encontrei uma só pessoa com o mesmo histórico que eu, enquanto no Brasil isso é relativamente frequente. Concluo que aqui as pessoas são mais sensitivas. Mas isso não é um segredo só meu.


Dica do dia: confesse pra alguém quem você é. Esse alguém pode nem sonhar que conhece uma pessoa tão peculiar e interessante quanto você.

Lhamito, fofo, peculiar e interessante que só ele!
* Adivinha o autor, vai. Começa com H. No 3! ;)

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

A conta-gotas

Alegria a conta-gotas é melhor do que alegria nenhuma, certo? E foi olhando pela janela que hoje ela me assaltou: ela, que tão parca nos dias anteriores, hoje transbordou do meu peito e me trouxe de volta à vida. Ela, que andava tão pouca, hoje se fez presente. Sublime.

“Mesmo a mais infeliz das existências tem os seus momentos luminosos e suas pequenas flores de ventura a brotar entre a areia e as pedras.”*

Chego em casa tarde da noite, sento em frente ao computador, mordo uma barrinha de cereal insossa e penso na minha resolução de ano velho: lutar pela minha felicidade, doa a quem doer. Não vou deixá-la escapar dessa vez. E para isso, 7 regrinhas mágicas:

Regra nº 1: Não depositar minha alegria na mão de uma só coisa/pessoa, mas espalhá-la por aí. Um pouquinho em cada canto, pra quando eu perdê-la ser mais fácil de achar. Supresa escondida sabe-se bem onde.

Regra nº 2: Pensar menos, viver mais. Por mais que a bendita intuição diga o contrário, esperar e deixar as coisas acontecerem. Paciência, menina!

Regra nº 3: Confiar mais em Deus. No final chego sempre à conclusão de que a vida se encarregou do melhor caminho, mesmo enquanto eu sofria loucamente por antecipação ou achava saber o caminho certo. Besteira. O rio sempre segue o seu curso. O que tiver que ser, que seja! 

Regra nº 4: Amar mais as pessoas, incondicionalmente. A atendente impaciente, o guarda mal-educado, a mãe num dia ruim. Retribuir todas as grosserias com um grito de 90 decibéis muita gentileza e interferir no ciclo dos maus tratos positivamente.

Regra nº 5: Meditar mais. Parar, respirar fundo e pensar em nada, mesmo no meio da tempestade. Escapar e voltar revigorada. Re-voltar, enfim, sempre que necessário.

Regra nº 6: Usar as roupas estranhas e a maquiagem maluca que eu tenho vontade. Parece bobagem, mas essa regra é tão importante quanto as outras cinco e sozinha costuma me deixar bem feliz.

Regra nº 7: Guardar as seis regrinhas anteriores no bolso e tirá-las sempre que preciso. Sempre. Há de ser um desses mistérios da vida que se tenha que repetir o óbvio mil vezes para que ele não seja esquecido.

Amanhã vou procurar um canto remoto do planeta, me isolar e procurar me reconciliar com a vida. Sem computador, sem telefone. Usarei uma roupa maluca e uma maquiagem pior ainda. Apenas eu e uma paisagem, em silêncio, em paz. E a gente vai se bastar. Ah, vai!


*trecho de "O Lobo da Estepe", Hermann Hesse.

segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Venezas de merda

É, perdi o sono mais uma vez. Mas já que não teve jeito fui fazer algo produtivo e ler, e acabei achando esse trecho grifado num dos livros da minha fantástica coleção kunderística:

"As privadas dos banheiros modernos se erguem do chão como a flor branca do nenúfar. O arquiteto faz o impossível para que o corpo esqueça sua miséria e para que o homem ignore o que acontece com os dejetos de suas entranhas quando a água da descarga os expulsa gorgolejando cano abaixo. Os canos dos esgotos, ainda que seus tentáculos cheguem até nossos apartamentos, são cuidadosamente escondidos de nossos olhares e nada sabemos acerca dessas invisíveis Venezas de merda sobre as quais estão construídos nossos banheiros, nossos quartos de dormir, nossos salões de festas e nossos parlamentos."

Milan Kundera - A insustentável leveza do ser.

Às vezes paro pra pensar no engenhoso sistema de esgotos que “embeleza” as nossas cidades e pra variar não tenho como não deixar meu pensamento ir além. Posso ser pessimista hoje? Então tá.

Penso na hipocrisia da nossa sociedade que esconde a Veneza de merda das suas mentes e faz um esforço descomunal pra viver uma vida de aparências bem bonita, correta e heróica. Todos expondo felizes suas privadas pensantes. Não canso de estranhar, de não fazer parte, de não entender o modo como as coisas funcionam. Dizer a verdade é uma vergonha. Ser humano é ridículo. Estar triste é absurdo. Sentir dor é sinal de fraqueza. Desrespeito é sinal de poder. Pra mim os canos dos esgotos estão expostos por todos os lados.

Não, eu não me sinto melhor do que ninguém. Feliz é quem não se incomoda e se sente parte dessa família universal dos "bons modos". Já eu me sinto vivendo uma piada contada mil vezes. No início tinha até graça, mas e agora? Está cada vez mais difícil dar o sorrisinho amarelo nosso de cada dia. Eu tinha sonhos normais, via graça e até gostava de pertencer a tudo isso. Acreditava nos mais velhos quando diziam que esse era o único caminho. Em que momento eu deixei de fazer parte? Eu não sei dizer. Minha tela cresceu e não cabe mais nessa moldura. Talvez acabe indo por água abaixo. Ou todos nós. Talvez o grande arquiteto puxe a descarga a qualquer momento.

Não sei pra que lado fugir. Sigo o rebanho ou fico à margem? Aceito sugestões.

A flor de nenúfar. Fiquei curiosa e fui procurar.


quarta-feira, 2 de novembro de 2011

Viagem e autoconhecimento



Poucos prazeres se comparam ao de viajar, conhecer lugares e pessoas, aprender novas línguas, ouvir as variadas músicas das cidades e florestas, sentir os sabores e cheiros de cada lugar, descobrir vários mundos dentro do próprio mundo.

Nada mais engrandecedor do que carregar essas lembranças todas para sempre, tecer seu mundo interior com milhares de paisagens, seres e cores novas e se tornar assim um novo eu. Não há nada mais revelador do que estar na estrada, por vezes sozinho, com fome e frio, perdido, cansado, e chegar assim bem perto de quem você é, dos seus limites, medos e anseios.

É no final descobrir que sair pelo mundo é uma viagem mais interna do que externa. É aproximar-se mais de si próprio, de desvendar esse milagre que é estar vivo e ser quem você é, esse ser único e singular. É ver-se pequeno e ao mesmo tempo gigante no meio do mundo e descobrir-se parte ativa e integrante dele.

É nascer de novo e reaprender a enxergar. É enriquecer os sentidos. Experimentar coisas do seu jeito, ver com os próprios olhos e tocar com as próprias mãos, ser personagem de histórias únicas e incríveis que no final farão parte de você por toda a sua vida.

Selecionei alguns trechos de Sidarta onde Hermann Hesse descreve lindamente o processo de autoconhecimento e de reaprender a ver o mundo.

"Caminhando cada vez mais devagar, absorvido pelos pensamentos, Sidarta perguntou-se a si mesmo: “Mas que desejaste aprender dos teus mestres e extrair dos seus preceitos? Que será aquilo que eles, que tanto te ensinaram, não conseguiram propiciar-te?” E ele encontrou a resposta: “Era meu desejo conhecer o sentido e a essência do eu, para desprender-me dele e para superá-lo: Porém não pude superá-lo. Apenas logrei iludi-lo. Consegui, sim, fugir dele e furtar-me às suas vistas. Realmente, nada neste mundo preocupou-me tanto quanto esse eu, esse mistério de estar vivo, de ser um indivíduo, de achar-me separado e isolado de todos os demais, de ser Sidarta!
E de coisa alguma sei menos do que sei quanto a mim, Sidarta!”"

"Olhou o mundo a seu redor, como se o enxergasse pela primeira vez. Belo, era o mundo! Era variado, era surpreendente e enigmático! Lá, o azul; acolá, o amarelo! O céu a flutuar e o rio a correr, o mato a eriçar-se e a serra também! Tudo lindo, tudo misterioso e mágico! E no centro de tudo isso achava-se ele, Sidarta, a caminho de si próprio."

"O sentido e a essência não se encontravam em algum lugar atrás das coisas, senão em seu interior, no íntimo de todas elas."

Procurando ruínas incas no Peru

sábado, 29 de outubro de 2011

Sobre estradas, caminhos e uma vida offshore pela frente


Desde pequena eu já sabia que a minha vida seria na estrada. Mapas, globos terrestres e documentários sobre aqui e ali sempre me fascinaram. Enquanto as meninas da minha idade se apaixonavam por um artista, eu costumava me apaixonar por um país. Colecionava fotos, informações e contava tanto sobre esse determinado lugar que as outras pessoas acabavam se apaixonando também por ele. Depois comecei a me apaixonar por bandas também, mas a questão geográfica delas era pra mim tão forte quanto a própria música.

Daí eu cresci e comecei a por em prática meu ideal de conhecer o mundo. Só que meu grande obstáculo era viajar de avião, pois além do medo de altura (ou melhor, do medo do chão mesmo naquela altura) sempre fico com a impressão de estar perdendo um pedaço enorme de terra e de mar pelos quais seria muito mais interessante ir passando devagarinho, parando e conhecendo.  Então avião pra mim é um combo de pavor e desperdício que eu prefiro evitar.

Acontece que o tempo e a distância costumam nos levar a “caminhar” pelo ar, pois infelizmente não é possível atravessar um oceano de jet ski, como o google nos sugere. E agora que vou começar a trabalhar offshore vai fazer parte da minha rotina viajar de helicóptero pra cima e pra baixo, o que a princípio me parece fascinante e ao mesmo tempo aterrorizante.

Apesar dos helicópteros e afins, acho por enquanto que será perfeito ficar longe da humanidade (ou boa parte dela), num “mundo distante” por 14 dias, e nos outros 14 dias ter tempo livre suficiente pra fazer o que eu mais amo: viajar! Mas acho que o maior desafio da profissão não vai ser viajar 1 hora de jet ski helicóptero até a plataforma, mas o lado psicológico, esse lobo que eu tenho que domar diariamente, o que me parece tarefa mais difícil ainda num ambiente de confinamento. Tenho certeza de que meu time de super-heróis vai me dar todo o suporte, mas acho que a briga maior vai ser comigo mesma.

Enfim, só vou saber quando cruzar essa ponte. Quero ser caminho, não estrada, e parar a cada passo pra admirar a beleza dos dias, um de cada vez, sem pensar muito no que virá ou deixará de vir. Ver a vida como caminho e não como estrada é entender que não há um destino a alcançar: o destino é o próprio caminhar. Milan Kundera em “A Imortalidade” compara a questão dos caminhos a da própria vida humana:

Antes ainda de desaparecerem da paisagem, os caminhos desapareceram da alma humana: o homem já não sente o desejo de caminhar e de extrair disso um prazer. E também a sua vida ele já não vê como um caminho, mas como uma estrada: como uma linha conduzindo de uma etapa à seguinte, do posto de capitão ao posto de general, do estatuto de esposa ao estatuto de viúva. O tempo de viver reduziu-se a um simples obstáculo que é preciso ultrapassar a uma velocidade sempre crescente.

No mundo das estradas, uma bela paisagem significa: uma pequena ilha de beleza, ligada por um longo caminho a outras pequenas ilhas de beleza.

No mundo dos caminhos, a beleza é contínua e sempre variada; a cada passo ela nos diz “Pare!”


Caminhando em Orscholz, Alemanha, bem segura e pertinho do chão.


quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Sobre a entrega

It is often safer to be in chains than to be free.
Franz Kafka
Um dos grandes dilemas da entrega não é apenas o medo de sofrer, mas principalmente a mais fundamental das questões, que é: será que eu quero?
Todo relacionamento amoroso, por mais superficial que seja, envolve a espera por algo; o doar e esperar doação. Quando o envolvimento aumenta, a espera se torna mais crítica e por vezes nos impede de respirar; ela se torna uma condição para a felicidade. Esquecemos porém que não há garantia de retribuição e satisfação dos nossos desejos, que cada indivíduo é um ser único e singular e que seu sentimento não pode ser controlado e deve ser respeitado.
A espera e o medo da não-retribuição se tornam pior do que a própria frustração dos sentimentos, pois frustração é solução (Lösung) e possibilita que sejam traçadas novas metas realisticamente. Já o medo paralisa; não é possível traçar metas realistas quando se há medo. O agir e o não-agir se tornam igualmente  plausíveis por não se saber com que cartas o outro está jogando.
Como o futuro é incerto, a única forma de avaliar se vale a pena ou não entregar-se é saber, no nosso íntimo, se estamos seguindo o caminho desejado. Porque as ilusões são muitas e por vezes nos enganamos achando que precisamos de algo totalmente desnecessário, apenas pela falta do real objeto de desejo no momento; queremos suprir o que não nos é dado. Acontece que o envolvimento no falso objeto de desejo ou objeto de substituição resultará fatidicamente em frustração, ou seja, muito trabalho e energia que poderiam ser poupados em prol do equilíbrio emocional.
 É a velha questão do “conhece-te a ti mesmo”. Conhecer-se é saber o que se é, e portanto analisar as situações à sua frente sabendo se ao seguir esse ou aquele caminho você estará sendo fiel a você mesmo, a seus desejos e aspirações, e mais ainda, à sua própria personalidade, e não apenas buscando algo que as outras pessoas consideram fundamental ou te aconselham a fazer. Conselhos são como peças de roupa: servem para uns, mas não servem para outros. Respeitar-se antes para respeitar o outro. Antes perguntar a si próprio e agir de acordo com os próprios desejos e metas no bem; isso sim é garantia de paz de espírito, estado necessário para ser feliz e suportar o sofrimento do caminho.
Respondida a questão do querer, o próximo passo é a entrega, e com ela a redenção (Erlösung). O altruísmo, ou o amor desinteressado, é talvez um dos maiores desafios da nossa sociedade doente e paranóica. Mas ele deve ser exercitado diariamente, pois não há bem maior do que doar sem exigências. Não, não será fácil. É mais fácil estar acorrentado a um jogo de cobrança, de dar e receber. Mas, ainda assim, não espere nada em troca. Aja antes corretamente e aguarde. A retribuição virá na hora oportuna.
Em alguma ruína inca na Cordilheira dos Andes

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

Meme!

Fui inspirada pelo Meme lido no blog da Nivea Sorensen.
http://www.niveasorensen.com/2011/10/16/meme-da-ana/

Algo realmente leve e inútil para essa noite chuvosa de segunda. Vamos lá!

1. Pegue o livro mais perto de você, abra na página 18 e encontre a 4ª linha:
“Dois dias depois um carregador chegou trazendo as bagagens (...)” O Lobo da Estepe, Hermann Hesse.

02.Estique seu braço esquerdo o mais longe que puder. O que você encontra?
Um sofá branco forrado com um manto azul boliviano com lhaminhas bordadas.

03. Qual foi a última coisa que assistiu?
Um dvd do Coldplay.

04. Sem olhar o relógio, que horas você acha que são?
20:40

05. Agora, olhe no relógio. Que horas são?
21:05

06. Sem contar o barulho do computador, o que mais está ouvindo?
A chuva e meu pai brigando com meu cachorro que fez xixi no banheiro dele.

07. Quando foi a última vez que saiu? Onde foi?
Ontem à noite, na casa do Lucas.

08. Antes de começar esse questionário, o que estava fazendo?
Conversando com o Glauco no chat do facebook.

09. O que tá vestindo?
Um short branco e uma camiseta amarela com um diabinho tocando guitarra na frente. =X

10. Você sonhou a noite passada?
Sim, que estava numa festa alemã estilo Oktoberfest e estava chovendo. Acho que era o som de fora interferindo no meu sonho.

11. Quando foi a última vez que você deu risada?
Hoje à tarde, assistindo ao tal Vlog do Fernando.

12. O que acha da pessoa que te indicou este desafio
Ninguém me indicou, eu li o dos outros e fiquei com vontade de fazer também. J

13. Viu alguma coisa esquisita há pouco tempo?
Acho que foi uma tartaruga gigante abrindo a boca, projetada num telão. Que bicho mais esquisito!

14. Qual foi o último filme que você assistiu?
Faz tempo que não assisto nada. Acho que foi Bruna Surfistinha até a metade, shame on me.

15. Se você se tornasse milionária da noite para o dia, o que compraria?
Um piano. O piano.

16. Uma coisa sobre você que eu não saiba:
Provavelmente ninguém sabe que eu tenho fobia a bigodes grandes. Podem ser fotos ou desenhos de bigodes também. Descobri recentemente quando fui a um barzinho na Lapa decorado como uma barbearia antiga, com fotos de bigodes por todas as partes. Me senti extremamente desconfortável e compelida a não olhar para as paredes.

17. Seu estado de espírito agora:
Entediada.

18. Se você pudesse ser qualquer mulher famosa, qual seria? (não vale dizer nenhuma):
Alanis Morissette. Foi  a primeira que veio na minha cabeça.

19. Imagine que seu primeiro filho seja uma menina, como a chamaria?
Laura.

20. Imagine que seu primeiro filho seja um menino, como o chamaria?
Gabriel.

21. Você pensa em morar fora?
Se for pra morar fora novamente, que seja em Londres!

22. O que você mais quer agora?
Comer uma torta alemã. Mas vou ficar na vontade.

23. Qual a pessoa (s) mais importante na sua vida:
Eu mesma, definitivamente (senão dá briga).

24. Qual seu sonho para curto prazo?
Viajar para a Patagônia.

25. Indicar para cinco blogs:
Para quem quiser fazer! J

Do Homem Trágico, por Thomas Wolfe

Trechos brilhantes do Wolfe. É difícil selecionar trechos de obras que tem uma intenção e um sentido maior em sua totalidade. Tenho mania de grifar trechos de livros e neste caso com Wolfe, assim como com o Tratado do Lobo da Estepe em O Lobo da Estepe do Hesse me pego grifando páginas inteiras. Enfim, tentei me prender ao tema do homem trágico nesta seleção.

Dedico a quem também tem o caos dentro de si.
Para viver sozinho como tenho vivido, um homem deveria ter a confiança em Deus, a fé tranqüila de um santo monástico, a invencibilidade implacável de Gibraltar. Sem isto, há épocas em que qualquer coisa, tudo, os incidentes mais triviais, as palavras mais casuais conseguem num instante privar-me de minha couraça, enfraquecer minha mão, apertar meu coração num terror gélido, encher minhas entranhas com a substância cinzenta da impotência arrepiante.
Van Gogh
Às vezes não passa de uma sombra cruzando o sol; às vezes nada é senão a luz tórrida e
turva de agosto, ou a feiúra despojada e o decoro sórdido das ruas do Brooklyn, esmaecendo na paisagem enfadonha daquela luz turva, e evocando a miséria insuportável de prostitutas incontáveis e vidas indefiníveis. Às vezes é apenas o horror estéril do concreto cru, ou então o calor chispando nos milhões de carros que passam disparados pelas ruas tórridas, ou ainda os
monótonos terrenos de estacionamentos, cobertos de escória de hulha, ou o estrondo violento, a balbúrdia da Ferrovia Elevada, ou a multidão de gente que caminha pela terra, avançando sempre, numa fúria exacerbada, indo apressada para lugar nenhum.”
“Pode ainda ser apenas uma frase, um olhar, um gesto. Pode ser a fria e desdenhosa inclinação de cabeça que um almofadinha contido e afetado da Park Avenue dispensa quando lhe apresentam alguém, como se para dizer: “Você é um nada”. Ou pode ser também uma referência sarcástica, um repúdio por parte de um crítico, numa revista semanal da classe alta. Ou ainda uma carta de uma mulher dizendo que estou perdido e arruinado, que meu talento desapareceu, todos os meus esforços são falsos e inúteis – só porque renunciei à verdade, à
visão de mundo e à realidade que tão maravilhosamente pertencem a ela.
E às vezes é menos que tudo isso – nada que eu possa ver, tocar, escutar ou definitivamente recordar. Pode ser tão vago quanto uma espécie de horrenda atmosfera da alma, sutilmente composta de toda a fome e fúria, de todo o desejo impossível que minha vida já experimentou. Pode, também, ser uma lembrança meio esquecida do vermelho frio e pálido das tardes de domingo de inverno em Cambridge; e de um rosto lívido, estético e sensível, que despertou minha atenção por seu discurso sincero naquela mesma tarde de domingo em Cambridge, dizendo-me que todas as minhas esperanças da juventude eram ilusões lamentáveis, e que minha vida inteira resultaria em nada, enquanto o vermelho da luz pálida de março refletia-se no rosto lívido com uma impotência desoladora, extinguindo instantaneamente de meu sangue todas as paixões da juventude.”
Sob a evocação dessas luzes e dessas atmosferas, dessas palavras frias e desdenhosas, dessa gente cheia de escárnio e afetação, toda a música e alegria do dia esvai-se como uma vela apagada, a esperança me parece perdida para sempre, e toda a verdade que eu já tenha descoberto e conhecido parece-me falsa. Num momento como esse o homem solitário sente que toda a evidência de seus próprios sentidos o traiu, e que nada vive ou se move na terra a não ser criaturas da morte-em-vida – aquelas de corações frios e apertados, de rins doentios, que para sempre existem no vermelho pálido da luz de março e das tardes de domingo.”
(…)
Então de repente, um dia, por nenhuma razão aparente, sua fé e sua confiança na vida renascem numa maré enchente. Despertam nele com uma força jubilante e invencível, escancarando uma janela na vasta parede do mundo, restaurando tudo em formas de um brilho imortal. Miraculosamente restabelecido e seguro de si mesmo, ele se lança de novo na lida triunfante da criação. Toda a sua velha força lhe pertence de novo: ele sabe o que sabe, ele é o que é, ele encontrou o que encontrou. Vai dizer a verdade que está dentro dele, vai dizê-la nem que o mundo inteiro a negue, afirmá-la nem que um milhão de homens gritem que ela é falsa.
(...)
O fato é este: o homem solitário, que é também o homem trágico, é invariavelmente o homem que mais ama a vida – ou seja, é o homem feliz. Nessas declarações não há paradoxo algum. Uma condição implica na outra, e a torna necessária.
Não há nada de estranho ou curioso nisto, há somente o que é inevitável e correto. Pois o escritor trágico sabe que a felicidade está enraizada no coração da tristeza, que o êxtase brota do súbito filete rubro da dor, que a punhalada do desejo insuportável e a efêmera e violenta glória da posse penetram com maior intensidade ainda no instante mesmo da maior vitória do homem, pelo sentido premonitório da perda e da morte. Visto e sentido dessa forma, o melhor e o pior que o coração humano pode conhecer são meramente aspectos diferentes da mesma coisa, entrelaçados na trágica teia da vida.
(...)
É o sentido da morte e da solidão, o conhecimento da fugacidade de seus dias, e o enorme fardo ameaçador de sua tristeza, que cresce sempre, que nunca cessa, o que torna a felicidade gloriosa, trágica e absolutamente preciosa para um homem como Jó. A beleza vem e passa, perde-se no momento em que a tocamos, não pode ser detida ou mantida mais do que se pode deter um rio que corre. A partir dessa dor da perda, do êxtase amargo da fugacidade das coisas, da glória deste momento único, é que o escritor trágico compõe um cântico de felicidade. Pelo menos isto ele pode guardar e estimar para sempre. Seu cântico é cheio de lamento porque ele sabe que a felicidade é fugidia, que se vai no instante em que é possuída, daí ser tão preciosa, retirando sua glória maior das próprias coisas que a limitam e destroem.”
Thomas Wolfe, O Menino Perdido e Outros Contos (1937)

quinta-feira, 13 de outubro de 2011

Garimpando livros

O dia amanheceu chuvoso na terça-feira e eu acordei com uma missão: garimpar livros nos sebos do centro do Rio. Levantei e lá fui eu, munida de guarda-chuva e perdida como uma bala. Não consegui me achar no meu mapa rabiscado: parei então desnorteada numa padaria quase em frente ao Theatro Municipal e pedi à garçonete um queijo-quente e uma informação.
- Iiiih, moça...é longe, viu! – ela disse, mas me orientou mesmo assim.
Segui o caminho indicado de ruas cheias de lama e poças d’água e cheguei finalmente à Avenida Passos. Logo do início da avenida já pude avistar uns quatro sebos. Entrei no primeiro que vi e deixei o cheiro de livros antigos encher meus pulmões, o que despertou com entusiasmo tanto a minha euforia quanto a minha rinite alérgica.
 Enfrentando a barreira invisível de ácaros e o que mais houvesse naquele ar pesado, entrei, pois, com a esperança de achar um pedacinho da minha alma dobrado como um bilhete dentro de um daqueles livros empoeirados. Fui direto ao que interessava: às prateleiras de literatura estrangeira. Um belo funcionário alto e ruivo me indicou o caminho. Fui guiada quase que por uma força maior à letra H. Já que o dinheiro era curto demais para escolhas tolas, resolvi buscar um clássico de Hesse, como Demian ou O Lobo da Estepe, ambos já lidos, o primeiro nunca adquirido e o segundo perdido numa dessas “emprestâncias” da vida. Antes o gosto familiar de uma boa releitura à amarga supresa de uma leitura ruim, e para dizer a verdade eu não estou numa época boa para experimentar coisa alguma.
Pulei pra letra K. Pensei em pegar um Kafka. Quase me decidi por Cartas à Milena. Fiquei ainda apaixonada por um livro de contos de Kafka ilustrados por Nikolaus Heidelbach, Oportunidade para um pequeno desespero. Ele une duas coisas que eu amo: Kafka e ilustrações dark.

Um trechinho da resenha: No livro “Franz Kafka – Oportunidade para um Pequeno Desespero”, Heidelbach selecionou as histórias entre os diários e textos de Franz Kafka. Suas ilustrações comentam com humor o absurdo da aparente normalidade da existência humana que Kafka expressou em sua obra. Mas que achado interessante! Pena que era um exemplar novo e custava o olho da cara, então entrou pra wishlist do mês que vem.

Acabei escolhendo  Demian, do Hesse. O belo funcionário olhou pro exemplar na minha mão e deu um enome sorriso, dizendo: - Demian é ótimo! – como quem também fosse um grande admirador de Hesse ou simplesmente estivesse se esforçando para vender o livro.
Concordei com ele e disse que já o tinha lido, mas queria levá-lo para minha coleção, e em seguida perguntei pelo Lobo.
- Ah, o Lobo! – disse ele – Esse é difícil de achar, todos procuram por ele! Mas vou procurar nos nossos registros.
Ele ditou para outra funcionária “O Lobo da Estepe” para que ela procurasse nos arquivos do sebo, o que me mostrou que sim, ele realmente conhecia Hesse e não queria tão somente vender o livro. Sorri.
O cheiro de chuva que vinha de fora se misturava ao cheiro de mofo de dentro. Umidade e poeira, ahá, prato feito para a minha alergia. Paguei pelo Demian e saí daquele local antes que sufocasse de vez, e foi no sebo da frente que achei inúmeros exemplares de Hesse, entre eles um Lobo da Estepe exatamente igual ao que eu tinha antes. Me emocionei na hora. Pensei na dedicatória do meu livro perdido e senti um vazio enorme. Não, não vai ser a mesma coisa.
Foi subitamente, como um rio que as margens acabam de ceder e águas se espalham por todo o campo”. Fiquei ali, com o livro na mão por uns minutos, sem me mover. Aquele livro tinha sido presente de aniversário do não-dia, e desde aquele dia “intimamente, na alma, aquele homem nos perturbou e prejudicou, e, a bem dizer, até hoje não consegui me libertar dele”. Me refiro com aquele homem ao Hesse, ao Lobo e à pessoa que me presenteou o Lobo, os quais no dia 15 de março de 2006 entraram na minha vida e nunca mais saíram dela.
Voltei de metrô mergulhada no Lobo, como se aquelas linhas fizessem parte de mim, as quais porém eu nunca ousaria escrever por contarem uma verdade que eu mal poderia aguentar.
Garimpar livros não é tarefa fácil. Há de se enveredar entre milhares de títulos, seguindo pistas de bons autores, de indicações ou simplesmente de um bom título ou trecho interessante, ou ainda aventurar-se seguindo pista nenhuma, entregando-se a um exemplar desconhecido de uma história qualquer. Mas acredito que isso tudo no final é besteira, pois são os livros que nos escolhem. E o Lobo me escolheu nesse dia, mais forte ainda do que antes. Entrei nele como em um transe, e pretendo ler e reler cada linha até absorver o sentido completo de tudo o que ali está.
Já havia advertido Hesse: Só para loucos.


Trechos de O Lobo da Estepe de Hermann Hesse e A Valsa dos Adeuses de Milan Kundera utilizados no texto.

segunda-feira, 26 de setembro de 2011

O doente emocional e as relações amorosas

Laura precisava dormir e não conseguia. Precisava vomitar os pensamentos que a desnorteavam. As palavras vinham vorazes quando escrevia sobre isso, apesar da reação muda de sempre. Se reviram em sua mente e em seu estômago as lembranças daqueles dias e noites em que olhava-o em silêncio e amava-o de forma profunda e soberana. Não sabia nem entendia de onde vinha tanto amor. Não, esse amor não vinha dele. Vinha da sua própria necessidade de amar. É triste o fim do doente emocional. É preciso separar o ideia do amor da própria doença, e os limites nem sempre são claros.
Ele exercia inegável poder sobre ela. Ela acabava por achar correto o que não lhe cabia, por ele aceitava o absurdo e ainda acabava por ver nisso algo de fundamental. A verdade é que sua alma masoquista não a permitia perder alguém por quem precisava sofrer e perto de quem se sentia inferior.
O pensamento nele a cegava a ponto de não mais saber quem ela era. Ela se via agora como duas pessoas: ela e ele, e sem ele não havia mais existência. Por várias vezes se perguntava se aquilo que fazia era de seu agrado ou não, e acabava confundida pela opinião dele e assumindo-a como sua, quase que acreditando piamente na mentira que contava para si própria. Ela não existia mais.
Eis que um dia, depois de tanto não-ser, não-saber e não-conseguir-mais que a nossa não-heroína da história, depois das mais inúmeras humilhações, mas ainda antes do completo auto-aniquilamento, num último sopro instintivo de vida, resolveu livrar-se daquilo tudo como um doente de câncer decide, ainda, viver.
Enfim, não se sabe bem onde encontrou forças para fazer calar a voz do feroz carrasco que gritava em sua mente e que havia materializado naquela figura vazia e inexpressiva pela qual poderia facilmente morrer, e decidiu-se finalmente por assumir seu papel de, agora sim, heroína de si própria e salvar-se do suicídio psicológico. Mas a decisão de calar a voz não é fácil. Há de se reaprender a viver, a dormir, a comer, a levantar da cama e a querer algo mais do que alimentar aquela doença imposta por si própria; porque a pior doença, a de mais difícil cura, é a que causamos em nós próprios.

Esse texto (cortados os devidos trechos para proteger a identidade de quem eu falo), foi escrito há um tempo atrás, mas achei muito propício postá-lo nesse momento para uma pessoa muito querida com quem tenho conversado bastante ultimamente. A situação aqui foi vivida por mim (escrevo como Laura quando narro meus próprios episódios de depressão ou quando simplesmente preciso desabafar). O doente emocional tem a mais difícil das missões: controlar seus impulsos auto-destrutivos, vencer o descontrole e separar a doença ao máximo da realidade. A cura não se vende na farmácia e nem no supermercado, mas se encontra dentro dele, no auto-controle e na luta diária contra o mais implacável dos inimigos que é ele mesmo.
O doente emocional (claro que me refiro aqui a um determinado tipo dentre zilhões) carrega para os seus relacionamentos toda a sua carga de dependência e necessidade desesperada de ser ajudado. Ele não quer um companheiro, quer cura. Não por egoísmo, mas porque a doença não o deixa seguir. E isso determina o fracasso do relacionamento antes mesmo dele começar, já que todos temos problemas e ninguém está ávido em busca de um doente emocional, a não ser que você seja um psicólogo querendo ganhar o pão de cada dia. Se você não sabe lidar com você mesmo, será um fardo muito grande querer que alguém faça isso.
O pior é que o doente emocional sempre procura os tipos mais contrários à sua própria personalidade para amar: as pessoas mais fortes, bem-resolvidas, auto-confiantes, felizes e radiantes – tudo aquilo que ele não é e com o que nunca vai saber lidar, gerando sentimentos de inferioridade e rejeição. Na sua imaginação, ele se desdobra no outro, sem entender que ele nunca adquirirá todas aquelas qualidades tão admiradas por osmose. Ele não é a outra pessoa e nunca será; sua convivência com ela vai no máximo ofuscar ou anular por completo a pouca força e auto-confiança que ainda o resta.
É preciso ser racional nas escolhas quando é o seu amor-próprio que está em jogo. E a garantia do sucesso não está em saber de tudo isso, mas sim na sua atitude frente à doença. Não se aventure à beira do precipício se sabe que não vai aguentar a queda. A culpa quase sempre será sua, e você sabe bem disso.
“Often it is the most deserving people who cannot help loving those who destroy them.”
Hermann Hesse