segunda-feira, 26 de setembro de 2011

O doente emocional e as relações amorosas

Laura precisava dormir e não conseguia. Precisava vomitar os pensamentos que a desnorteavam. As palavras vinham vorazes quando escrevia sobre isso, apesar da reação muda de sempre. Se reviram em sua mente e em seu estômago as lembranças daqueles dias e noites em que olhava-o em silêncio e amava-o de forma profunda e soberana. Não sabia nem entendia de onde vinha tanto amor. Não, esse amor não vinha dele. Vinha da sua própria necessidade de amar. É triste o fim do doente emocional. É preciso separar o ideia do amor da própria doença, e os limites nem sempre são claros.
Ele exercia inegável poder sobre ela. Ela acabava por achar correto o que não lhe cabia, por ele aceitava o absurdo e ainda acabava por ver nisso algo de fundamental. A verdade é que sua alma masoquista não a permitia perder alguém por quem precisava sofrer e perto de quem se sentia inferior.
O pensamento nele a cegava a ponto de não mais saber quem ela era. Ela se via agora como duas pessoas: ela e ele, e sem ele não havia mais existência. Por várias vezes se perguntava se aquilo que fazia era de seu agrado ou não, e acabava confundida pela opinião dele e assumindo-a como sua, quase que acreditando piamente na mentira que contava para si própria. Ela não existia mais.
Eis que um dia, depois de tanto não-ser, não-saber e não-conseguir-mais que a nossa não-heroína da história, depois das mais inúmeras humilhações, mas ainda antes do completo auto-aniquilamento, num último sopro instintivo de vida, resolveu livrar-se daquilo tudo como um doente de câncer decide, ainda, viver.
Enfim, não se sabe bem onde encontrou forças para fazer calar a voz do feroz carrasco que gritava em sua mente e que havia materializado naquela figura vazia e inexpressiva pela qual poderia facilmente morrer, e decidiu-se finalmente por assumir seu papel de, agora sim, heroína de si própria e salvar-se do suicídio psicológico. Mas a decisão de calar a voz não é fácil. Há de se reaprender a viver, a dormir, a comer, a levantar da cama e a querer algo mais do que alimentar aquela doença imposta por si própria; porque a pior doença, a de mais difícil cura, é a que causamos em nós próprios.

Esse texto (cortados os devidos trechos para proteger a identidade de quem eu falo), foi escrito há um tempo atrás, mas achei muito propício postá-lo nesse momento para uma pessoa muito querida com quem tenho conversado bastante ultimamente. A situação aqui foi vivida por mim (escrevo como Laura quando narro meus próprios episódios de depressão ou quando simplesmente preciso desabafar). O doente emocional tem a mais difícil das missões: controlar seus impulsos auto-destrutivos, vencer o descontrole e separar a doença ao máximo da realidade. A cura não se vende na farmácia e nem no supermercado, mas se encontra dentro dele, no auto-controle e na luta diária contra o mais implacável dos inimigos que é ele mesmo.
O doente emocional (claro que me refiro aqui a um determinado tipo dentre zilhões) carrega para os seus relacionamentos toda a sua carga de dependência e necessidade desesperada de ser ajudado. Ele não quer um companheiro, quer cura. Não por egoísmo, mas porque a doença não o deixa seguir. E isso determina o fracasso do relacionamento antes mesmo dele começar, já que todos temos problemas e ninguém está ávido em busca de um doente emocional, a não ser que você seja um psicólogo querendo ganhar o pão de cada dia. Se você não sabe lidar com você mesmo, será um fardo muito grande querer que alguém faça isso.
O pior é que o doente emocional sempre procura os tipos mais contrários à sua própria personalidade para amar: as pessoas mais fortes, bem-resolvidas, auto-confiantes, felizes e radiantes – tudo aquilo que ele não é e com o que nunca vai saber lidar, gerando sentimentos de inferioridade e rejeição. Na sua imaginação, ele se desdobra no outro, sem entender que ele nunca adquirirá todas aquelas qualidades tão admiradas por osmose. Ele não é a outra pessoa e nunca será; sua convivência com ela vai no máximo ofuscar ou anular por completo a pouca força e auto-confiança que ainda o resta.
É preciso ser racional nas escolhas quando é o seu amor-próprio que está em jogo. E a garantia do sucesso não está em saber de tudo isso, mas sim na sua atitude frente à doença. Não se aventure à beira do precipício se sabe que não vai aguentar a queda. A culpa quase sempre será sua, e você sabe bem disso.
“Often it is the most deserving people who cannot help loving those who destroy them.”
Hermann Hesse

domingo, 18 de setembro de 2011

“When someone is seeking,” said Siddartha, “It happens quite easily that he
only sees the thing that he is seeking; that he is unable to find anything,
unable to absorb anything, because he is only thinking of the thing he is
seeking, because he has a goal, because he is obsessed with his goal. Seeking
means: to have a goal; but finding means: to be free, to be receptive, to have
no goal. You, O worthy one, are perhaps indeed a seeker, for in striving
towards your goal, you do not see many things that are under your nose.”
― Hermann Hesse, Siddhartha

Aos que buscam e enxergam o mundo como um mistério indecifrável. Aos tantos que tornam meus dias mais doces e meu caminho mais leve.

E, após a tempestade, tem sido dias tão sublimes que dá medo de quebrar.

quarta-feira, 14 de setembro de 2011

Liebe ohne gegen-Liebe

Um dos propósitos de escrever aqui, além de prover a humanidade de trechos de livros ótimos e dividir com ela a dor e a delícia de ser o que eu sou (afff que mania de grandeza! hahaha) é formar um banco de dados de textos e memórias para eu mesma reler mais tarde e recordar, já que eu deletei meu fotolog, o Transatlanticism, há um tempo atrás. Ai, se arrependimento matasse! D:


Mas enfim... sigamos. No more regrets. Ontem à noite peguei um livro pra ler e qual não foi minha surpresa quando achei uma já esquecida dedicatória na primeira página que dizia assim:



Mary,


Que este livro lhe traga momentos de paz e meditação, lembrando que o amor incondicional a todas as pessoas é o único caminho. "Amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo".


Essa linda dedicatória (da pessoa mais especial do mundo, diga-se de passagem) me remete ao capítulo mais lindo e cheio de significados de todos os livros que eu já li, que é o 22 da Valsa dos Adeuses do Kundera. É um capítulo de duas páginas, curtinho, e tem que ler na íntegra pra amar. Mas aqui vai um trechinho:



O garoto de grandes óculos estava de pé contra a janela, como que petrificado, o olhar fixo no lago. E Jakub entendeu que o garoto estava ali à toa, que não era culpado de nada, e que tinha vindo ao mundo, para sempre, com olhos doentes. E pensou ainda que aquilo de que não gostava nos outros era alguma coisa de gratuito, aquilo com o que vinham ao mundo e que carregavam consigo como uma grade pesada. E sentiu que não tinha nenhum direito privilegiado à grandeza de alma e que a suprema grandeza de alma era amar os homens mesmo que fossem assassinos.


O amor incondicional... o Liebe ohne gegen-Liebe, ou o amor sem esperar retribuição. Como ainda estou distante disso! A causa de muito sofrimento ainda é a nossa ignorância. Mas ainda que me perca às vezes por outros caminhos, eu sei qual é o caminho certo.


A jornada ainda é longa e árdua, mas eu vejo o farol.



Vou voltar pra cama talvez. Dia de chuva, dia de ler. Talvez role um rugby mais tarde pra animar.



A foto foi tirada no Trem da Morte, em algum lugar em meio ao longo trajeto de 26h de viagem, na Bolívia.

terça-feira, 13 de setembro de 2011

Livre, enfim!

"- Afirmaste certa vez - disse-me um dia - que a música te agradava por ser totalmente destituída de moralidade. Está certo. Mas o que importa é que tu também não sejas moralista. Não há porque te comparares com os demais, e se a natureza te criou para morcego, não deves aspirar a ser avestruz. Às vezes te consideras por demais esquisito e te reprovas por seguires caminhos diversos dos da maioria. Deixa-te disso. Contempla o fogo, as nuvens e quando surgirem presságios e as vozes soarem em tua alma abandona-te a elas sem perguntares se isso convém ou é do gosto do senhor teu pai ou do professor ou de algum bom deus qualquer". [Hermann Hesse]

Vivendo um dia de cada vez. Saindo quando eu tenho vontade, lendo o que eu quero, trabalhando quando sobra tempo. Me sentindo "eu" novamente. Pena que não dá para ser livre para sempre.

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

Quem sou ela

“A doida do miosótis” é personagem da mente de Agnes, que por sua vez é uma personagem do livro “A Imortalidade” de Kundera (gosto dessa história de personagem dentro de personagem). É alguém que, cansada da feiúra do mundo, anda com um vaso contendo uma única flor de miosótis na frente do rosto, a fim de nada mais olhar além desse único ponto azul, tido como o  “último traço, quase invisível, da beleza”. É o que a Agnes imagina ser seu próprio fim.

Ela pensou: um dia, quando a invasão da feiúra tornar-se inteiramente insuportável, comprará no florista um só raminho de miosótis, pequeno caule encimado por uma flor miniatura, sairá com ele na rua, segurando-o em frente ao rosto, o olhar fixado nele a fim de nada ver, a não ser esse belo ponto azul, última imagem que quer conservar de um mundo que ela deixou de amar. Irá, desta forma, pelas ruas de Paris, as pessoas logo saberão reconhecê-la, as crianças correrão atrás, zombarão dela, jogarão coisas e Paris inteira irá apelidá-la: a doida do miosótis... [Milan Kundera, A Imortalidade]
Sinto vontade de aderir a essa ideia às vezes. Esse mundo de relacionamentos descartáveis e pessoas substituíveis, onde ninguém mais importa verdadeiramente e tudo é uma versão de alguma coisa, onde tudo perdeu a originalidade, onde não se busca solução para os grandes problemas da humanidade, onde buscamos ávidos pela próxima distração enquanto o mundo desaba lá fora e tudo se torna normal em frente a uma tela de computador, onde somos teletransportados para dentro de um ambiente artificial enquanto tanta sacanagem acontece e ninguém faz nada pra mudar. Está todo mundo em transe. Está todo mundo anestesiado.
Ninguém parece se importar em ter um emprego deprimente a fim de acumular bens. Será que dói mais em mim do que na grande maioria viver uma porcaria de rotina em que os talentos são massacrados na repetição de atividades mecânicas e sem expressão? Quem se mantém normal em meio a essa loucura é realmente louco. Quem não acaba deprimido ou quem se nutre de tanta porcaria sem sentir vazio algum dentro de si só pode ter problemas mentais. Tenho medo de acabar como uma hippie ou como a doida, mas tenho mais medo ainda de não acabar como ela. Tenho medo de acabar me enquadrando nessa sociedade de superfície.  Não me sinto parte de nada disso e tenho medo.
É tanta feiúra no mundo que, sinceramente, não sei se quero fazer parte dele. Se quero me enquadrar, comprar carro, casa, casar, criar filhos e morrer. Se quero conviver com quem acha isso tudo normal, e o pior de tudo, bom.
Concluo com um trecho de Hermann Hesse em “O Lobo da Estepe”:
- (...) Porque estou tão só e amo tão pouco a vida, as pessoas e a mim mesmo quanto você; e como você, não posso levar nada disto a sério. Sempre houve pessoas assim, que exigem da vida o que ela tem de mais alto e não podem conformar-se com sua estupidez e crueldade.
Pois é, não posso me conformar. Vou ali comprar um raminho de miosótis.