domingo, 26 de fevereiro de 2012

"Open your eyes"


Ah, os embarques. Eles me fazem pensar, desconfiar, me virar pelo avesso, pensar que o mundo conspira contra e a meu favor. Me trituram os neurônios enquanto eu fico tentando montar o quebra-cabeça. Mas o que costura meus pedacinhos com cordas de aço costuma ser o céu de Monet. Como o "vanilla sky", que o personagem do filme de mesmo nome escolheu para iniciar seu sonho lúcido. É preciso ter um autocontrole absurdo, e ninguém me treinou para isso quando disseram que eu ia embarcar. Porque aqui os pensamentos são de chumbo. Eu fui treinada para apagar incêndio, para me jogar do navio, para seguir a rota de fuga, para salvar a vida de um companheiro em perigo, mas não me mostraram o botão de liga e desliga dos pensamentos no mundo lá fora. 

Como terapia auto-receitada, passei então a assistir ao pôr-do-sol nosso de cada dia. Copiei descaradamente o David de "Vanilla Sky" e escolhi a paisagem para o meu sonho lúcido, com a pequena grande exceção de que na obra de arte eleita por mim é como se Monet  tivesse caprichado um pouco mais e preenchido a tela com um oceano grandioso. Passei a perceber nas variadas histórias de vida das pessoas que estão no mesmo barco que eu (literalmente) lições de uma sabedoria absurda. Fiz minhas orações diariamente, trabalhei com mais afinco, busquei dentro de mim e sinto que mais uma vez nessa vida renasci. E, olha que engraçado, estava tudo bem ali o tempo todo. Sempre está, basta aprender a ver; uma, dez, cem vezes na vida. Sempre uma criança a cair, ralar os joelhos, chorar, levantar, sacudir a poeira e voltar a brincar com mais vontade do que nunca. Tudo é possível sob o céu de Monet.

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

Pontilhismo

Então o que é a litost?


A litost é um estado atormentador nascido do espetáculo da nossa própria miséria repentinamente descoberta.


Milan Kundera, O Livro do Riso e do Esquecimento 


Queremos abraçar as ruínas para que não caiam, trancar a porta para que não saiam, tapar os ouvidos para não saber. 
Chorar no banho para que as lágrimas se afoguem em água morta. Acreditar em gente habitada na Terra, em mentiras sinceras. Insistimos em descer a estrada torta. Queremos quem nos frustra, quem nos muda para um ser estranho e perdido. Queremos pedidos concedidos, queremos ibope. Queremos fingir que não é questão de sorte. Queremos pintar o cinza de cor-de-rosa, virar o lado sujo para a parede. Acontece que é gota e eu tenho sede. Acontece que é muito trailer e pouco filme. Acontece que é lençol e eu tenho frio. Alguém já disse antes que sobra tanta falta. Eu só digo sempre que tá bom, tudo bem, deixa comigo. Eu só digo que consigo, que encaro, que conserto. Coloco o coração no bolso e digo que tá tudo certo. Eu aguento, eu aperto. Engulo o choro e finjo que não doeu. Vou tentando preencher essa tela com pontinhos, vou colando os caquinhos. Vou deixando que uma frase faça o meu dia, vou empurrando para o porão meus surtos de euforia, vou tapando com band-aid a hemorragia. Eu que ando tão cheia de auto-ajuda que queria mesmo era que tudo explodisse, ou que todos tivessem pelo menos a hombridade de assumir que não sabem o que fazer. Eu só queria te dizer que estou farta de economia, de egoísmo, de eufemismo, de precaução. Que tenho juntado as migalhas para não morrer de fome. Que o prato esfria. Que o tempo corre mais rápido na ampulheta quase vazia.


domingo, 5 de fevereiro de 2012

Na pior em Paris e Londres

Que saudades de escrever aqui no bloguinho! Mas como no meu último embarque eu não conseguir levar o notebook para o navio (longa história) fiquei sem ter como atualizar o Doida.

Mas vamos ao que interessa. Acabei de ler um livro interessantíssimo e queria muito contar para vocês sobre ele! É o Na pior em Paris e Londres - a vida de miséria e vagabundagem de um jovem escritor no fim dos anos 1920 (cujo título original é Down and out in Paris and London – “down and out” é uma expressão utilizada no boxe quando o lutador é nocauteado e não consegue mais se levantar) de ninguém menos que o célebre George Orwell (autor de clássicos como 1984, que inspirou o "Big Brother"A Revolução dos Bichos). 

George Orwell
Como fã de Orwell, me interessei muitíssimo pelo livro, que o meu namorado acabou me dando de Natal. Eu já havia feito uns trabalhos sobre o Orwell, o que me motivou a escrever a minha monografia da graduação sobre um livro do Lima Barreto, que para mim em propósito era a versão nacional mais aproximada do Orwell. O caráter de crítica social e política das obras dos dois autores sempre me fascinou. Os dois abdicaram de tudo e resolveram levar a vida como escritores. Se dedicar ao próprio talento: aí está a meu ver uma das atitudes mais respeitáveis que um ser humano pode ter. Mas isso é assunto para outra vez.

Vamos ao Na pior. É um livro autobiográfico que fala sobre a pobreza nas duas capitais europeias em 1928. Orwell (nome real: Eric Arthur Blair) passou por maus momentos quando decidiu se dedicar à carreira de escritor. Passou fome, lavou pratos, viveu como mendigo. Nesse livro ele retrata sua experiência de extrema pobreza do início da carreira, que segundo ele serviu para “expiar a culpa de ter trabalhado por cinco anos na polícia imperialista britânica”.

Na pior descreve, como diz o nome, como é estar na pior. Mas na pior mesmo, de trabalhos de semi-escravidão à pobreza total. Sei que tem muita gente que prefere nem saber como é, mas eu gosto de me colocar no lugar do outro. Seus relatos são muitas vezes chocantes. É impressionante a descrição de Orwell em primeira pessoa sobre como é ser olhado como mendigo, ou qual a reação do corpo em estado de fome extrema. Orwell passou o pão que o diabo amassou. Eu que já dormi em praça e em ponto de ônibus na neve e comi restos de lanches de Mc Donald's alheios em minhas aventuras mochileiras vi que o que eu passei não foi absolutamente nada. 

Eu sempre tive curiosidade sobre a vida dos mendigos, essas pessoas transparentes pelas quais quase ninguém parece se importar. Como foram parar nessa situação de exclusão total da sociedade? Fala-se tanto em amor ao próximo, mas por que privamos esses seres humanos comuns do nosso amor?

Também é muito interessante o capítulo sobre as gírias e palavrões da época: o bloody e o fucking já eram usados, “anexados a qualquer substantivo”, e o bastard já era o pior xingamento possível para os ingleses.

Alguns trechos memoráveis:

"Quando você se aproxima da pobreza, faz uma descoberta que supera algumas outras. Você descobre o tédio, e as complicações mesquinhas e os primórdios da fome, mas descobre também o grande aspecto redentor da pobreza: o fato de que ela aniquila o futuro. Quando você tem cem francos, fica à mercê dos mais covardes pânicos. Quando tudo o que você tem na vida são apenas três francos, você se torna bastante indiferente. Você fica entediado, mas não tem medo. Pensa vagamente: `em um ou dois dias estarei morrendo de fome - chocante, não?'. E então a mente divaga por outros assuntos. Uma dieta de pão e margarina proporciona, em certa medida, seu próprio analgésico. E há outro sentimento que serve de grande consolo na pobreza. Acredito que todos que ficaram duros já o experimentaram. É um sentimento de alívio, quase de prazer, de você saber que está, por fim, genuinamente na pior. Tantas vezes você falou sobre entrar pelo cano - e, bem, aqui está o cano, você entrou nele e é capaz de aguentar. Isso elimina um bocado de ansiedade."

Sobre um mendigo: “Ele não havia comido desde de manhã, caminhara vários quilômetros com uma perna torta, suas roupas estavam encharcadas e meio penny o separava da inanição. Ainda assim, era capaz de rir de perda de sua navalha. Impossível não admirá-lo.”

“As roupas são coisas poderosas. Vestido com roupas de mendigo é muito difícil, pelo menos no primeiro dia, não sentir que se está genuinamente degradado.”

“Um homem que recebe caridade quase sempre odeia seu benfeitor – é uma característica da natureza humana (...)”

O que mudou em mim? Como o Orwell bem aconselha, “nunca mais vou pensar que todos os vagabundos são patifes bêbados, nem esperar que um mendigo se mostre agradecido quando eu lhe der uma esmola, nem ficar surpreso se homens desempregados carecem de energia, (...) nem recusar um folheto de propaganda, nem me deleitar com uma refeição em um restaurante chique. Já é um começo.” 


Se é.