quinta-feira, 26 de abril de 2012

Aliviaram o mundo



"Senti-me diferente imediatamente: em lepidez de voo e dança, mas também calma capaz de parar-me em qualquer ponto. Se explico? Era gostoso e estranho, era o de ninguém transmitir. Tinham aliviado o mundo."

Guimarães Rosa

É simples. Você sabe exatamente o que é mau, e não aceita que ele possa ser tão doce. Não há ao redor dele grades, então por que não? Você escolhe viver aquilo, você cai e tropeça diversas vezes, mas não desiste. Você insiste. Até você resolver extirpar o mau. Vai doer. O pós-operatório não é agradável. Mas você aceita e enfrenta, sabendo que o pedaço de carne podre te pertencia e que o corte ainda não cicatrizou, mas ainda assim tem a certeza inata, alma secreta de todas as dúvidas, de que agiu corretamente e deve aguentar firme porque o doer é agudo mas o recuperar é mágico.

Eu me sinto recuperada - o mundo tem sido muito mais leve. Lembro-me do que passei como se pensa numa dor de dentes: você sabe que havia dor, havia incômodo, mas não lembra exatamente quanto e como; e a mente logo divaga por outros assuntos.

Foi exatamente isso: aliviaram o mundo.

Goodbye, by David Lupton 
[E não é por mal. Não é por nada. É que a terra em cima de ti te cai tão bem...]

segunda-feira, 2 de abril de 2012

Abandono


Ontem era eu abandonando o velho mundo. Saindo dele pela janela. Arrumando as malas com pressa e deixando coisas para trás. Escolhendo o que doeria menos abandonar. Uma biografia do Hesse em alemão, um Don Quijote em espanhol e outros tantos livros – a perda maior. Deixando também um pedacinho do meu coração no fundo da gaveta, junto ao sobretudo, algumas calças jeans, as botas pretas. Meu casaco preferido, mas não cabia mais um alfinete na mala. A verdade é que quando a gente abandona as coisas por uma vida nova a gente nunca espera que o pior ainda possa estar por vir. Essa burra esperança de que depois de tudo se está esperto demais para errar de novo. Bullshit.

Meses depois e mesmo sabendo, eu achei honesto viver o que eu sentia. Na verdade não deve haver honestidade alguma, pois como diz Kundera “o amor nos engana a todos por uma ilusão de compreensão”. Na verdade, deve ser algo de desconhecido e aleatório que une as pessoas. Talvez seja mesmo a posição dos astros, talvez uma substância invisível, um hormônio ou algo estúpido assim que não merece o meu entendimento.

Dessa vez o pedacinho de coração partido eu deixei ali na mesa empoeirada e cheia de papéis, embaixo de um bilhetinho deixado por mim dias atrás enquanto eu ainda achava que podia fazer alguma coisa. Pensei em rasgá-lo antes de sair, mas não. Por algum motivo deixei-o lá. Deve ter sido pela posição da Lua em Vênus que não permite que bilhetinhos de amor sejam dilacerados - vai saber o que move as coisas. O bilhetinho com certeza não está mais lá, à vista. Foi retirado e o meu pedaço de coração com sorte escorregou para debaixo da cama, ou foi pisoteado e está colado na sola do sapato de alguém, passeando pela cidade neste momento.

Espero que não sobre muito dessa vez, para não servir de munição para uma próxima vez. É muito mais digno um coração dilacerado a um coração suicida com 7 vidas. Não quero um coração de gato, mas um coração de borboleta. Aniquilado de uma vez, morte súbita. Não quero um coração remendado, cheio de mágoas, tentando de novo. É risível, é digno de pena. Que me sobre alguma dignidade, enfim. 

Eu temia esse peso e ouvia em minha alma as palavras de Jesus: não temais o dia seguinte pois o dia seguinte cuidará de si mesmo. A cada dia sua dor.

Em seguida atirei-me na cama e senti um vazio na alma, e fiquei a ponto de chamá-la de volta porque já sentia sua falta no instante em que a expulsava, porque, eu sabia, era mil vezes melhor uma Lucie vestida e rebelde do que ficar sem Lucie.

A Brincadeira, Milan Kundera.