quarta-feira, 27 de junho de 2012

Ressaca, 1º Ato


[Quero dizer que esse é um evento mais do que superado (com orgulho). Aprendi que reconhecer a própria dor na dor alheia tem uma função quase anestésica e ajuda muito na recuperação. Que seja postado, então, para que quem precise se identifique e saiba que, por mais que doa, há saída. 


E por mais que minha exposição possa ser usada contra mim (oi, bêbada), eu não me importo. É mais fácil fingir ser forte, radiante, feliz. Eu não sou nada disso, não o tempo todo. Na verdade ninguém é, no mínimo engana bem. Regozija-se com a verdade, que sou alguém com altos e baixos, que tenho a honra de expor a minha verdade, goste alguém dela ou não. 


Que seja útil.]

Estou fazendo como a Martha Medeiros em Fora de Mim e escrevendo sobre essa perda. Isso a ajudou, pode ser que me ajude também. Eu que tenho tentado de tudo, da medicina ao curandeirismo, não poderia perder essa oportunidade.

Ontem fez uma semana que a gente se separou. Não sei se posso dizer que a dor é a mesma. Na verdade, sinto que ela evoluiu para algo mais agudo, mais profundo, como um tumor maligno que se espalha para outros órgãos. Pergunto-me até quando. Eu não sei o que fazer contra essa dor. Não há aspirina, não há analgésico, no máximo um calmante e uma Mariana abobalhada e sonolenta pelo dia afora. Não acho que a minha família entenda, escondo deles o que eu sinto para ninguém sofrer por tabela. Meus amigos tem uma vaga ideia. Mas a minha dor, essa é pessoal e intransferível e tem me acompanhado como uma herança descabida, como uma cabeça de alce deixada por um parente, que não combina com a sala, não combina com os móveis, não combina com nada; apenas está ali, tomando espaço e enfeiando o ambiente.

Ontem tentei sair com uma pessoa pela primeira vez. Não haveria algo – avisei com antecedência – e lá fomos nós conversar. Depois de você, minha vida tem sido uma sucessão de eventos malsucedidos. Um espetáculo circense de mau-gosto, pecando pelo sarcasmo, com a vida na plateia a se escangalhar de rir de minhas tentativas em vão de juntar os caquinhos. Passeamos – distantes, obviamente – e vi algumas das suas ex-namoradas e casos, ou sabe-se lá como você as chamou. Todas me escrutinam, reparam no meu vestido, observam de longe como eu vago sozinha e eu por um instante penso que a minha dor é visível e quero sair dali. Sinto-me na posição de um ladrão que tem sua cabeça exposta em praça pública; eu sei que me olham como quem diz “bem-feito”, mas ainda assim eu sinto uma certa compaixão por aquelas mulheres. Sei que todas elas também sofreram por você e mesmo que involuntariamente formamos um exército que compartilha das mesmas cicatrizes de guerra.

Saímos dali. Conversamos sobre como é torturante estar totalmente apegado emocionalmente a alguém mau e indiferente, sem citar nomes. As lembranças vem poucas, doloridas e mancas, e aos poucos tomam força e os eventos começam a fazer sentido, como um quadro de Monet olhado de longe; andei por um bom tempo com a cara colada no quadro. Constatei, não sem uma dose severa de vergonha, como você se aproveitou de mim e me afetou. O palhaço que eu enceno cai da cadeira e quebra uma perna nesse momento. A plateia se contorce de rir.

Chego em casa e sonho que eu estou com a tal pessoa, o coadjuvante do palhaço. É estranho, é dolorido, mas de repente ele se transforma em você e uma sensação de alívio e prazer toma conta de mim, mas eu mal posso aproveitá-la pois a sua imagem logo se esvai e se transforma nele de novo. Acordo sem ar, coração disparado. Você foi um idiota, culpado disso ou não pela inexperiência, e eu não sei onde minha saudade encontra forças para se justificar, mas ela está ali, onipresente, onilatente e onidolorida – palavras que ainda não foram inventadas mas que encontram aqui a perfeita oportunidade para passar a existir.

Tento entender como isso funciona. A pessoa acha uma outra bonita, avalia suas qualidades como um empregador avalia um currículo: hum, vamos ver: fala línguas estrangeiras, viajou, estudou em tal lugar. Boa foto. Resolve que vale a pena investir. Entra na sua vida, explora-a da forma burra como sabe e a devasta. Acha uma outra pessoa, aparentemente mais bonita e interessante que a primeira; o perfil dessa já não se encaixa mais à vaga, sentimos muito. Assim, a primeira é demitida e jogada na rua para que ache um novo emprego. Nova experiência agregada ao currículo: alguns meses na empresa Indiferença, com raras folgas e fins de semana.

São 9 horas. Mais uma vez dormi pouco e mal. Decido enfrentar o dia, ou não: dilema de todas as manhãs. Mais um dia: o espetáculo continua. E essa turnê circense parece que não tem fim.

"Isso a fez compreender que os olhares eram fardos insuportáveis, beijos de vampiros; que fora o estilete dos olhares que gravara as rugas em seu rosto."  

A Imortalidade, Milan Kundera





Mais uma do David Lupton

sexta-feira, 8 de junho de 2012

Dois lados


Sob a evocação dessas luzes e dessas atmosferas, dessas palavras frias e desdenhosas, dessa gente cheia de escárnio e afetação, toda a música e alegria do dia esvai-se como uma vela apagada, a esperança me parece perdida para sempre, e toda a verdade que eu já tenha descoberto e conhecido parece-me falsa."

07 de junho, 10:23 PM. Vou começar com jeito de relatório policial, mas porque quero ser bem descritiva; porque quero narrar uma conversa que tive com uma pessoa querida, e se digito fervorosamente de madrugada tendo que levantar cedo amanhã é porque não quero perder a memória dessa noite. Quero imortalizá-la na forma de texto, e impedir assim que ela desapareça na tela branca do esquecimento.

Estávamos sentados no refeitório do navio. Contei um pouco do livro que eu estava lendo, e não sei como chegamos ao assunto “eu” - provavelmente porque a minha cara de desânimo tem sido contagiante. Falava sobre como eu sou hipersensível, sobre como tenho me sentido mais castigada do que o normal por eventos externos.  Da minha decisão de não me envolver mais com ninguém até eu estar totalmente pronta, até eu sentir que eu me basto e que não vou criar nenhuma relação de dependência com ninguém. Porque qualquer envolvimento tem sido para mim uma porta aberta para coisas que eu não preciso viver agora. Porque as perdas tem doído mais do que o normal. Essa vulnerabilidade eu preciso manter trancada, pelo menos por um tempo, sabe-se lá quanto. Eu não sei até que ponto pode-se evitar uma dor: uma faca fincada na perna dói, quer você queira, quer não. Por isso tenho mantido o esfaqueador do lado de fora e ponto.

Foi quando ele me respondeu:

- Essa vulnerabilidade tem a ver com as experiências passadas. Você é uma pessoa fantástica. Já viajou para um monte de lugares, já fez um monte de coisas, fala algumas línguas, canta... Por isso eu acho que você é muito crítica com você mesma. Você se cobra demais. 



Eu perdi meus pais e meu irmão num acidente de carro quando tinha dez anos.

(Essa frase me atingiu como um caminhão. Pausa para a Mariana chorar e se sentir estúpida frente aos próprios problemas, tão ínfimos perto dos problemas dos outros).

- Eu tive que virar adulto muito cedo. De uma hora para a outra eu virei o irmão mais velho, fui morar com os meus tios. Eu sinto que perdi uma parte importante da minha vida. Eu vejo as pessoas fazendo coisas, e eu não tive nada disso; eu tive que conseguir meu dinheiro muito cedo. E a dor existe, mas ela se torna suportável com o tempo. Ela se transforma em outra coisa. Mas não adianta querer evitá-la: ela está ali e pronto. O que você aprende é o que fazer com essa dor. Eu aprendi a separá-la dos outros eventos da vida. Se por um lado você fica mais endurecido diante da vida, por outro você cria uma defesa. Sabe, eu penso neles todos os dias.

(...)

Se alguém "supera" algo tão terrível, quem sou eu para não superar uma bobagem como uma decepção qualquer? Não acho sinceramente que o que me faltou na vida tenha sido um acidente trágico para aprender o verdadeiro valor das coisas. Mas isso certamente tornou meu amigo mais forte e menos vulnerável. Porque na minha opinião ele já passou pelo pior; o que mais poderia machucar tanto?

A minha sensibilidade exacerbada é responsável pela minha criatividade, pela compaixão, pela minha imaginação, pela minha capacidade de mergulhar nos livros e na música. Mas a minha dor existe, e eu não sei o que fazer com ela. Ela por vezes me impede de respirar, de levantar da cama, de enfrentar o dia. É exagerada, eu sei. Eu quero viver de forma mais leve, e para isso aqui estou eu jogando fora tudo o que é supérfluo e não me serve mais. Vou viver com o que sobra. Estou aprendendo a olhar para as coisas de outra forma, mas ainda não aperfeiçoei a técnica. Fugir das coisas tem sido a minha forma de defesa mais covarde e legítima. Eu tenho sorte, tenho uma família, tenho muitos amigos, tenho algum talento. Isso deveria bastar.

É o sentido da morte e da solidão, o conhecimento da fugacidade de seus dias, e o enorme fardo ameaçador de sua tristeza, que cresce sempre, que nunca cessa, o que torna a felicidade gloriosa, trágica e absolutamente preciosa"

Thomas Wolfe