quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

Navio fantasma

Pintura de Anne Penman Sweet

“Quanto mais pesado o fardo, mais próxima da terra está a nossa vida, e mais ela é real e verdadeira. Por outro lado, a ausência total de fardo faz com que o ser humano se torne mais leve do que o ar, com que ele voe, se distancie da terra, do ser terrestre, faz com que ele se torne semi-real, que seus movimentos sejam tão livres quanto insignificantes. Então, o que escolher? O peso ou a leveza?”*

Debruço a estibordo do navio, no meio de uma escuridão que une mar e céu no mesmo abismo infinito. Os olhos aos poucos vão se acostumando à ausência de luz e consigo identificar um leve brilho prateado sobre as águas iluminadas por uma lua distante, emoldurada por nuvens caprichosas cheias de voltas. Vejo as luzes de três barcos. Um bastante próximo, com uma linha de pesca esticada adentrando o mar calmo; um bem mais longe, com uma luzinha piscando num compasso quaternário, e as luzes distantes do que parece ser um navio bem grande, provavelmente outro FPSO, quase na linha do horizonte. Do meu lado esquerdo, a chama tímida do flare. Bem abaixo de mim, a luz prateada do navio onde estou refletida na água, como se centenas de peixes luminosos nadassem ali.

Penso na minha decisão, tão postergada, mas finalmente tomada. Agora já era – pensei. Fiz a minha escolha e abandonei mais uma pessoa. E sempre que eu deixo alguém, sinto-me estranhamente leve, e ao mesmo tempo com uma estranha vontade de ligar, pedir desculpas e tomar a decisão contrária logo em seguida. Sinto falta do peso.

Tenho minha dúvida se esse é um passado que se repete, como se Deus me desse mais uma vez a chance de tomar a decisão correta, de refazer uma lição que ainda não foi totalmente aprendida. Da última vez, eu também agi pela razão, o que deixa essa decisão com cara de erro reincidente. Hoje, vejo que não foi a decisão correta, mas nenhuma era. Hoje, vejo que a melhor decisão teria sido ter ficado sozinha, assim como hoje sei que o melhor caminho a se tomar é um retorno. Não tenho medo de ficar sozinha; tenho pavor é de uma união infeliz. Hoje, vejo que a solidão teria me poupado de muitos problemas. Aprendi que a solidão pesa muito menos do que um amor mal correspondido.

Penso em como me tornei insensível depois daquele cara. Penso em como a pessoa que eu mais pude amar pôde não me amar de volta, como se eu esperasse alguma justiça do mundo.  Em como sempre ponho um fim a tudo com um mínimo sinal aparente de fracasso, pois vi e vejo pessoas tão próximas viverem uma vida infeliz por nunca terem tomado decisão alguma. E viver com o peso do mau exemplo é algo muito sério e muito urgente. É não permitir se omitir, ou seria perseguida pela minha consciência como por cães na neve, sem poder correr, tropeçando a cada três passos e sentindo seus latidos cada vez mais próximos e seus bafos quentes na minha nuca.

Escapei dos cães essa noite. Peço a Deus que ele não sofra, pois eu já estive no seu lugar, e como estive. Foi uma história curta, porém bonita. Tivemos bons momentos, mas é que bons momentos não me comovem mais. Eu desaprendi a amar, e deixá-lo talvez seja a forma mais sincera e legítima de amor que eu consiga praticar agora. Estou salvando-o do apego a um fantasma sem coração. Me sinto grande e insensível. Me sinto uma alma sem corpo flutuando na noite. Me sinto parte daquela escuridão. E essa leveza, essa sensação de não ser de carne, essa falta de sangue correndo nas veias, essa fraqueza, esse nada todo só pode ser digno de um fantasma, habitando esse navio ancorado, sem rumo, sem direção.

"Mas era justamente o fraco que deveria saber ser forte e partir...”*


*Trechos de "A Insustentável Leveza do Ser", de Milan Kundera

domingo, 13 de janeiro de 2013

A (nem tão) insustentável leveza do meu domingo

Depois de ser atormentada por um telefone que não parou de tocar a madrugada inteira, resolvi desligá-lo pela manhã (quando tive forças pra isso) e saí pra caminhar e fotografar, procurando belas imagens, inspirada pelo livro "A Insustentável Leveza do Ser". Imaginei um lenço colorido solto no ar, uma flor frágil num muro de pedra, algo que trouxesse leveza ao meu último domingo de janeiro em terra depois de uma madrugada pesada de sono interrompido por um celular insistente. 

Resultado do passeio: minha pressão baixou bruscamente devido ao calor (deveria ter ido mais cedo), me perdi no caminho (não deveria ter mudado o trajeto). Inconvenientes à parte, consegui algumas boas imagens inusitadas. Nada de lenço voando ou flor num muro de pedra, mas encontrei uma biruta colorida de peixe e a leveza das formas de metal retorcido de um pesado portão enferrujado. 

E pra que ter certeza do que se vai encontrar pelo caminho? Temos algumas pistas, mas nada que determine o total sucesso ou o resultado final de uma escolha. Tomei esse pequeno exemplo do meu passeio de domingo pra refletir sobre uma dúvida maior que tem me atormentado por esses dias, o que é um peso inútil de se carregar. Abandonei-a então numa esquina qualquer enquanto procurava o caminho de casa. Acho que encontrei a leveza de que eu precisava.


"Não existe meio de verificar qual é a boa decisão, pois não existe termo de comparação. Tudo é vivido pela primeira vez e sem preparação. Como se um ator entrasse em cena sem nunca ter ensaiado. Mas o que pode valer a vida, se o primeiro ensaio da vida já é a própria vida? É isso que faz com que a vida pareça sempre um esboço. No entanto, mesmo "esboço" não é a palavra certa porque um esboço é sempre um projeto de alguma coisa, a preparação de um quadro, ao passo que o esboço que é a nossa vida não é o esboço de nada, é um esboço sem quadro."



A Insustentável Leveza do Ser



segunda-feira, 7 de janeiro de 2013

Um ano em 14x14


Família offshore

O ano passou de 2012 pra 2013 no calendário e eu nem vi. Aprendi a contar minha vida em escalas e a separar os dias em folgas e não-folgas. Nesse um ano de embarque eu dancei a vida num compasso de 14x14. Vários feriados foram passados como dias de trabalho normais, com a tristeza de estarmos presos num navio enquanto amigos e familiares celebravam com churrasco, praia e cerveja o dia de folga, mas com o alívio do prêmio de consolação para aqueles que ganham dobrado pelo dia. 

E a gente lá, unido, rindo da arvorezinha de Natal enfeitada com palitos de dente, contando "causos" e fazendo piadas um do outro, do jeito engraçado de falar português dos expats, das gírias de gente de todo canto do Brasil, das traduções ruins de um e do português pior ainda do outro. Um comentário errado no Facebook vai parar na parede do fumódromo e vira escárnio público. Prenderam um dia minha mochila com uma braçadeira de plástico numa cadeira da sala de controle, amarraram o macacão esquecido do outro no teto do banheiro. Muito cuidado ao deixar o prato na mesa durante as refeições quando sair pra buscar algo, pois fatalmente sua comida será entupida de pimenta pelos coleguinhas do lado, que farão cara de paisagem ao você voltar.

A maioria faz o que pode pra tornar o ambiente melhor: o Lhamito aparece numa pose diferente cada vez que arrumam o meu camarote; o rádio operador comunica a chegada do helicóptero de uma maneira toda especial: 5 minutes awaaaay! E assim passamos os dias. É enclausurado, mas a gente arruma um jeito de se divertir e rir até a barriga doer quando dá, em meio à tensão de se trabalhar sobre uma bomba-relógio. E a lição mais importante do ano foi essa: buscar a alegria nos lugares mais improváveis e transformar em paraíso os lugares mais absurdos. É tudo uma questão de esforço e ponto de vista.

Arvorezinha de Natal estilizada

Ceia de Natal pra embarcado nenhum botar defeito


quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

On poetry




"Poetry had started as a pastime on a wet afternoon, a game to play. I didn’t realise then, as I slotted in rhymes to names, writing on the red chenille tablecloth, that I was playing with a dangerous substance, one that would take its revenge on me if I didn’t honour it with work.

What’s at stake with poetry for me is awareness of my own life. Without writing, I’m unable to exercise a kind of inner eye, a moral vision which allows me to make sense of how I’m living. Everybody carries around in their heads a store of images, rules, scraps of experience which help them to make choices at important junctures in their lives. This is the raw material of poetry and everybody treasures it, even if they have no intention of turning it into art.

This source is like an inner spring, which takes a great deal of time to trickle into a pool at which you can drink. It needs privacy to build up, a protective wall around it. To be without this inner nourishment is to be a barren person, able only to react to life as you drift through it, with no inner direction. Draw too much on it and you exhaust yourself. If you don’t use it, the water becomes stagnant and you can’t see anything through it."

Sunbathing in the Rain, Gwyneth Lewis

Muito mais do que sobre depressão, mas sobre o mundo interior. Daqueles livros que a gente sai grifando, e quando vê já marcou quase tudo. Não consigo parar de ler.