Ah, os livros! Como diria Charles W. Eliot, eles são
os mais silenciosos e constantes amigos; os mais acessíveis e sábios conselheiros e os mais pacientes professores. É uma pena que no mundo atual haja tão pouco silêncio e leitores, logo tão pouco espaço para a leitura, embora haja tanto material escrito. Eu, como boa leitora, amo livros. Sou bem seletiva para com novos exemplares; não me aventuro sem uma boa indicação ou um conhecimento prévio do tema ou autor. Adoro fazer releituras (principalmente em outras línguas, para comparar as traduções) e redescobrir histórias que me marcaram há tempos atrás. Mas é importante ressaltar que nem todos os livros, por melhores que sejam, me despertam a vontade de relê-los. Há histórias que são feitas para serem lidas só uma vez.
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Florestas de Beckingen: palco para Siddhartha |
Mas hoje não vou falar da história dos livros, mas da história das leituras. Como boa leitora, tenho algumas manias, como a da releitura, por exemplo. Tive uma conversa dia desses com meu amigo Glauco sobre hábitos de leitura e ele me contou coisas muito interessantes. Ele gosta de ler em trens e assim como eu costuma selecionar trilhas sonoras bem especias para seus livros, além de guardar na memória onde os leu. Já eu lembro bem que numa certa primavera li todo o
Identity do Kundera num banco do cemitério da cidade de Merzig, Alemanha (gostava de ler em cemitérios por serem lugares seguros e silenciosos). O
Siddhartha do Hesse foi o primeiro livro que li todo em alemão, e o fiz nas florestas de Beckingen. Então reabrir o
Identity é voltar a ouvir o canto lamuriante dos corvos de Merzig, enquanto o
Siddhartha me remete ao cheiro das árvores e ao som de riacho correndo. Aliás, não há lugar melhor no mundo para se ler
Siddhartha do que à beira de um rio – quem já leu vai concordar.
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Capela do cemitério de Merzig, onde li o Identity |
Há também a questão da procedência dos livros. Apesar de sofrer de rinite alérgica, eu amo sebos. Acho que livros usados tem uma história muito especial. Gosto de pensar nos seus antigos donos, no impacto que causaram em quem os leu anteriormente, e acho fascinante que alguns deixem pistas de suas identidades e impressões para os novos leitores, seja por uma assinatura datada, trechos grifados ou até mesmo por uma foto colada na contra-capa, como há no meu
Siddhartha, comprado na Universität des Saarlandes na Alemanha: uma foto de dois amigos conversando, com o seguinte dizer abaixo:
Bewegung, Veränderung, Stillstand, Bewegung. Wir reden noch! (Movimento, mudança, paralisação, movimento. Conversaremos ainda!)
O. Schmidt, 28.06.94. Daí eu paro para pensar na história desses dois amigos: será que ainda se falam? Ou será que a promessa não foi cumprida? Aposto que o Hesse não esperava que um exemplar de seu livro causaria mais esse questionamento.
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Grifando com carinho |
Mas não há como falar de hábitos de leitura sem falar da arte de grifar trechos de livros. Não sei ler livros sem um lápis na mão para marcar e mais tarde voltar aos trechos preferidos. A arte de grifar é para mim muito séria: há de se danificar o mínimo possível o livro; logo grifar com caneta é terminantemente proibido. Usar marca-texto, então, é imperdoável. Costumo marcar trechos com chaves, sublinhar bem de leve ou desenhar simplesmente uma estrelinha ao lado da parte mais importante. Alguns livros tem capítulos inteiros tão bons que costumo grifar a página toda com grandes chaves, como foi o caso do capítulo 22 da
Valsa dos Adeuses do Kundera. Se o trecho é ótimo, ganha chaves e uma estrelinha, como também ocorreu nesse caso.
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Alguns exemplares da minha amada coleção de Kunderas |
Quanto à trilha sonora, A Imortalidade para mim tem como música de fundo perfeita a belíssima Traffic, do Stereophonics, em especial na parte em que Agnes sai de carro rumo à Suíça e, bem... leia o livro! ;) Te convido a entrar um pouquinho no meu mundo e a experimentar a melancolia de Agnes ao ler o seguinte trecho de A Imortalidade ouvindo Traffic. Aproveite e pergunte-se, ao fim: Is anyone going anywhere?
Paulo dirigia, enquanto Agnes contemplava a incessante agitação dos veículos, o piscar das luzes e todo o inútil burburinho de uma noite urbana que não conhece o descanso. Então, mais uma vez sentiu uma estranha e forte sensação que a invadia cada vez mais frequentemente: ela não tem nada em comum com essas criaturas de duas pernas, a cabeça acima do pescoço, a boca no rosto. Antigamente, sua política, sua ciência, suas invenções a tinham cativado, e ela imaginara, um dia, representar um pequeno papel em sua grande aventura, até o dia em que nasceu nela a sensação de não ser uma delas. Essa sensação era estranha, ela se defendia dela sabendo que era absurda e imoral, mas acabou se convencendo de que não se pode comandar os sentimentos: ela não podia nem se atormentar com suas guerras, nem alegrar-se com suas festas, porque estava impregnada pela certeza de que tudo isso não era problema seu.
E aqui vai a música:
E você, também tem suas manias ao ler um livro? Tem alguma história de uma leitura especial para contar? Adoraria saber a respeito! :)