Trechos brilhantes do Wolfe. É difícil selecionar trechos de obras que tem uma intenção e um sentido maior em sua totalidade. Tenho mania de grifar trechos de livros e neste caso com Wolfe, assim como com o Tratado do Lobo da Estepe em O Lobo da Estepe do Hesse me pego grifando páginas inteiras. Enfim, tentei me prender ao tema do homem trágico nesta seleção.
Dedico a quem também tem o caos dentro de si.
“Para viver sozinho como tenho vivido, um homem deveria ter a confiança em Deus, a fé tranqüila de um santo monástico, a invencibilidade implacável de Gibraltar. Sem isto, há épocas em que qualquer coisa, tudo, os incidentes mais triviais, as palavras mais casuais conseguem num instante privar-me de minha couraça, enfraquecer minha mão, apertar meu coração num terror gélido, encher minhas entranhas com a substância cinzenta da impotência arrepiante.
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Van Gogh |
Às vezes não passa de uma sombra cruzando o sol; às vezes nada é senão a luz tórrida e turva de agosto, ou a feiúra despojada e o decoro sórdido das ruas do Brooklyn, esmaecendo na paisagem enfadonha daquela luz turva, e evocando a miséria insuportável de prostitutas incontáveis e vidas indefiníveis. Às vezes é apenas o horror estéril do concreto cru, ou então o calor chispando nos milhões de carros que passam disparados pelas ruas tórridas, ou ainda os
monótonos terrenos de estacionamentos, cobertos de escória de hulha, ou o estrondo violento, a balbúrdia da Ferrovia Elevada, ou a multidão de gente que caminha pela terra, avançando sempre, numa fúria exacerbada, indo apressada para lugar nenhum.”
“Pode ainda ser apenas uma frase, um olhar, um gesto. Pode ser a fria e desdenhosa inclinação de cabeça que um almofadinha contido e afetado da Park Avenue dispensa quando lhe apresentam alguém, como se para dizer: “Você é um nada”. Ou pode ser também uma referência sarcástica, um repúdio por parte de um crítico, numa revista semanal da classe alta. Ou ainda uma carta de uma mulher dizendo que estou perdido e arruinado, que meu talento desapareceu, todos os meus esforços são falsos e inúteis – só porque renunciei à verdade, à
visão de mundo e à realidade que tão maravilhosamente pertencem a ela.
E às vezes é menos que tudo isso – nada que eu possa ver, tocar, escutar ou definitivamente recordar. Pode ser tão vago quanto uma espécie de horrenda atmosfera da alma, sutilmente composta de toda a fome e fúria, de todo o desejo impossível que minha vida já experimentou. Pode, também, ser uma lembrança meio esquecida do vermelho frio e pálido das tardes de domingo de inverno em Cambridge; e de um rosto lívido, estético e sensível, que despertou minha atenção por seu discurso sincero naquela mesma tarde de domingo em Cambridge, dizendo-me que todas as minhas esperanças da juventude eram ilusões lamentáveis, e que minha vida inteira resultaria em nada, enquanto o vermelho da luz pálida de março refletia-se no rosto lívido com uma impotência desoladora, extinguindo instantaneamente de meu sangue todas as paixões da juventude.”
“Sob a evocação dessas luzes e dessas atmosferas, dessas palavras frias e desdenhosas, dessa gente cheia de escárnio e afetação, toda a música e alegria do dia esvai-se como uma vela apagada, a esperança me parece perdida para sempre, e toda a verdade que eu já tenha descoberto e conhecido parece-me falsa. Num momento como esse o homem solitário sente que toda a evidência de seus próprios sentidos o traiu, e que nada vive ou se move na terra a não ser criaturas da morte-em-vida – aquelas de corações frios e apertados, de rins doentios, que para sempre existem no vermelho pálido da luz de março e das tardes de domingo.”
(…)
“Então de repente, um dia, por nenhuma razão aparente, sua fé e sua confiança na vida renascem numa maré enchente. Despertam nele com uma força jubilante e invencível, escancarando uma janela na vasta parede do mundo, restaurando tudo em formas de um brilho imortal. Miraculosamente restabelecido e seguro de si mesmo, ele se lança de novo na lida triunfante da criação. Toda a sua velha força lhe pertence de novo: ele sabe o que sabe, ele é o que é, ele encontrou o que encontrou. Vai dizer a verdade que está dentro dele, vai dizê-la nem que o mundo inteiro a negue, afirmá-la nem que um milhão de homens gritem que ela é falsa.
(...)
“O fato é este: o homem solitário, que é também o homem trágico, é invariavelmente o homem que mais ama a vida – ou seja, é o homem feliz. Nessas declarações não há paradoxo algum. Uma condição implica na outra, e a torna necessária.
Não há nada de estranho ou curioso nisto, há somente o que é inevitável e correto. Pois o escritor trágico sabe que a felicidade está enraizada no coração da tristeza, que o êxtase brota do súbito filete rubro da dor, que a punhalada do desejo insuportável e a efêmera e violenta glória da posse penetram com maior intensidade ainda no instante mesmo da maior vitória do homem, pelo sentido premonitório da perda e da morte. Visto e sentido dessa forma, o melhor e o pior que o coração humano pode conhecer são meramente aspectos diferentes da mesma coisa, entrelaçados na trágica teia da vida.”
(...)
“É o sentido da morte e da solidão, o conhecimento da fugacidade de seus dias, e o enorme fardo ameaçador de sua tristeza, que cresce sempre, que nunca cessa, o que torna a felicidade gloriosa, trágica e absolutamente preciosa para um homem como Jó. A beleza vem e passa, perde-se no momento em que a tocamos, não pode ser detida ou mantida mais do que se pode deter um rio que corre. A partir dessa dor da perda, do êxtase amargo da fugacidade das coisas, da glória deste momento único, é que o escritor trágico compõe um cântico de felicidade. Pelo menos isto ele pode guardar e estimar para sempre. Seu cântico é cheio de lamento porque ele sabe que a felicidade é fugidia, que se vai no instante em que é possuída, daí ser tão preciosa, retirando sua glória maior das próprias coisas que a limitam e destroem.”
Thomas Wolfe, O Menino Perdido e Outros Contos (1937)