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Pintura de Anne Penman Sweet |
“Quanto mais pesado o fardo, mais próxima da terra está a nossa vida, e mais ela é real e verdadeira. Por outro lado, a ausência total de fardo faz com que o ser humano se torne mais leve do que o ar, com que ele voe, se distancie da terra, do ser terrestre, faz com que ele se torne semi-real, que seus movimentos sejam tão livres quanto insignificantes. Então, o que escolher? O peso ou a leveza?”*
Debruço a estibordo do navio, no
meio de uma escuridão que une mar e céu no mesmo abismo infinito. Os olhos aos
poucos vão se acostumando à ausência de luz e consigo identificar um leve
brilho prateado sobre as águas iluminadas por uma lua distante, emoldurada por
nuvens caprichosas cheias de voltas. Vejo as luzes de três barcos. Um bastante próximo,
com uma linha de pesca esticada adentrando o mar calmo; um bem mais longe, com uma
luzinha piscando num compasso quaternário, e as luzes distantes do que parece
ser um navio bem grande, provavelmente outro FPSO, quase na linha do horizonte. Do meu lado esquerdo, a
chama tímida do flare. Bem abaixo de mim, a luz prateada do navio onde estou refletida na
água, como se centenas de peixes luminosos nadassem ali.
Penso na minha decisão, tão postergada, mas finalmente tomada. Agora já era –
pensei. Fiz a minha escolha e abandonei mais uma pessoa. E sempre que eu deixo
alguém, sinto-me estranhamente leve, e ao mesmo tempo com uma estranha vontade
de ligar, pedir desculpas e tomar a decisão contrária logo em seguida. Sinto
falta do peso.
Tenho minha dúvida se esse é um
passado que se repete, como se Deus me desse mais uma vez a chance de tomar a
decisão correta, de refazer uma lição que ainda não foi totalmente aprendida. Da última
vez, eu também agi pela razão, o que deixa essa decisão com cara de erro
reincidente. Hoje, vejo que não foi a decisão correta, mas nenhuma era. Hoje,
vejo que a melhor decisão teria sido ter ficado sozinha, assim como hoje sei
que o melhor caminho a se tomar é um retorno. Não tenho medo de ficar sozinha;
tenho pavor é de uma união infeliz. Hoje, vejo que a solidão teria me poupado
de muitos problemas. Aprendi que a solidão pesa muito menos do que um amor mal correspondido.
Penso em como me tornei insensível depois daquele cara. Penso em como a pessoa
que eu mais pude amar pôde não me amar de volta, como se eu esperasse alguma
justiça do mundo. Em como sempre ponho um fim a tudo com um mínimo sinal
aparente de fracasso, pois vi e vejo pessoas tão próximas viverem uma vida infeliz por
nunca terem tomado decisão alguma. E viver com o peso do mau exemplo é algo muito
sério e muito urgente. É não permitir se omitir, ou seria perseguida pela minha consciência como por cães na neve, sem poder correr, tropeçando a cada três passos e sentindo seus latidos cada vez mais próximos e seus bafos quentes na minha nuca.
Escapei dos cães essa noite. Peço a Deus que ele não sofra,
pois eu já estive no seu lugar, e como estive. Foi uma história curta, porém
bonita. Tivemos bons momentos, mas é que bons momentos não me comovem mais. Eu
desaprendi a amar, e deixá-lo talvez seja a forma mais sincera e legítima de amor
que eu consiga praticar agora. Estou salvando-o do apego a um fantasma sem
coração. Me sinto grande e
insensível. Me sinto uma alma sem corpo flutuando na noite. Me sinto parte daquela escuridão. E essa leveza, essa sensação de não ser de carne, essa falta de sangue correndo nas veias, essa fraqueza, esse nada todo só pode ser digno de um fantasma, habitando esse navio ancorado, sem rumo, sem direção.
"Mas era justamente o fraco que deveria saber ser forte e partir...”*
*Trechos de "A Insustentável Leveza do Ser", de Milan Kundera