segunda-feira, 2 de abril de 2012

Abandono


Ontem era eu abandonando o velho mundo. Saindo dele pela janela. Arrumando as malas com pressa e deixando coisas para trás. Escolhendo o que doeria menos abandonar. Uma biografia do Hesse em alemão, um Don Quijote em espanhol e outros tantos livros – a perda maior. Deixando também um pedacinho do meu coração no fundo da gaveta, junto ao sobretudo, algumas calças jeans, as botas pretas. Meu casaco preferido, mas não cabia mais um alfinete na mala. A verdade é que quando a gente abandona as coisas por uma vida nova a gente nunca espera que o pior ainda possa estar por vir. Essa burra esperança de que depois de tudo se está esperto demais para errar de novo. Bullshit.

Meses depois e mesmo sabendo, eu achei honesto viver o que eu sentia. Na verdade não deve haver honestidade alguma, pois como diz Kundera “o amor nos engana a todos por uma ilusão de compreensão”. Na verdade, deve ser algo de desconhecido e aleatório que une as pessoas. Talvez seja mesmo a posição dos astros, talvez uma substância invisível, um hormônio ou algo estúpido assim que não merece o meu entendimento.

Dessa vez o pedacinho de coração partido eu deixei ali na mesa empoeirada e cheia de papéis, embaixo de um bilhetinho deixado por mim dias atrás enquanto eu ainda achava que podia fazer alguma coisa. Pensei em rasgá-lo antes de sair, mas não. Por algum motivo deixei-o lá. Deve ter sido pela posição da Lua em Vênus que não permite que bilhetinhos de amor sejam dilacerados - vai saber o que move as coisas. O bilhetinho com certeza não está mais lá, à vista. Foi retirado e o meu pedaço de coração com sorte escorregou para debaixo da cama, ou foi pisoteado e está colado na sola do sapato de alguém, passeando pela cidade neste momento.

Espero que não sobre muito dessa vez, para não servir de munição para uma próxima vez. É muito mais digno um coração dilacerado a um coração suicida com 7 vidas. Não quero um coração de gato, mas um coração de borboleta. Aniquilado de uma vez, morte súbita. Não quero um coração remendado, cheio de mágoas, tentando de novo. É risível, é digno de pena. Que me sobre alguma dignidade, enfim. 

Eu temia esse peso e ouvia em minha alma as palavras de Jesus: não temais o dia seguinte pois o dia seguinte cuidará de si mesmo. A cada dia sua dor.

Em seguida atirei-me na cama e senti um vazio na alma, e fiquei a ponto de chamá-la de volta porque já sentia sua falta no instante em que a expulsava, porque, eu sabia, era mil vezes melhor uma Lucie vestida e rebelde do que ficar sem Lucie.

A Brincadeira, Milan Kundera.

2 comentários:

  1. É Mari, sei que a razão e a dor nos põe no ponto de não querer mais, de evitar e afastar a 'indignidade' da decepção. Mas, e então? O que esperar do depois se assim fizermos? A borboleta é súbita, mas tem a sorte de viver apenas 24 horas. O que fazer com nossos tantos anos senão viver, construir, abandonar, refazer e deixar a energia em movimento constante? Porque o movimento da tristeza é o mesmo que revira o pó do fundo e colore a vida com nova felicidade. Somos feitos de movimento, criação e abandono. Lindo e reflexivo texto, obrigada pelo brinde!

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  2. isso tudo me lembra uma história que ouvi há algum tempo...

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