sábado, 30 de novembro de 2013

Recomendo!




Intenso. Me via o tempo todo no lugar da Camila. Para quem também escoa seu excesso nas palavras.

"Hoje vou procurar a palavra que se perdeu, que escapuliu entre meus dedos, que escorreu por minhas mãos. Eu hoje vou conter nas letras esse fluxo que não para de me levar pra longe daqui. Eu hoje vou ficar aqui quieta, enquanto frases se formam, enquanto parágrafos inteiros se fixam na tela. Alguns fogem. E eu deixo que fujam porque sei que posso recuperá-los, melhores, adiante. Não me desespero mais. Encontrei o leito por onde escoar o meu excesso."

Camila Lopes

sexta-feira, 29 de novembro de 2013

"Pobre máquina de querer e de sentir coisas"

http://wanderingmist.com/my-paintings/nameless-and-faceless-an-impressionist-painting-in-acrylic-media-on-paper/

“Eu pensava essas coisas vãs e me sentia muito cansado, e uma grande amargura estava em meu coração. Cruzei os braços sobre a mesa e neles descansei a cabeça; e como que adormeci. Então tive uma grande pena de minha alma e de meu corpo, e de todo mim mesmo, pobre máquina de querer e de sentir coisas."

Rubem Braga, Sobre o inferno


Quarto vazio, só meu. Quanto mais vazio, mais os pensamentos escorregam da cama, ocupam espaço, se acomodam, empurram as paredes, saem pela frecha da porta, tomam peso e forma. Penso no que não posso prever, no próximo emprego, nas contas, nas viagens que não vou mais fazer. Ou vou. Perco muita energia com coisas inúteis. Me entristece que me entristeça com coisas pequenas e fúteis. Preciso me transcender. Tento lembrar que a vida agora é aqui e não lá fora. Que chegou a hora de mudar tudo de novo. Meu universo é um eterno expandir e retrair. A gravidade me puxa para o centro até a pressão crescer tanto e me explodir num grande Big Bang para fora de novo, para longe, a anos-luz da rotina. 

Penso em como as palavras do meu amigo fazem sentido:

"É isso, querida... não nasci para viver uma vidinha caseira muito tempo em um mesmo lugar... não sei se terei uma carreira um dia... ou onde irei parar... e isso, para mim, é toda a graça de estar vivo". 

Talvez toda a graça esteja mesmo em não ser, em nunca se tornar e em não se preocupar com nada disso. 

terça-feira, 24 de setembro de 2013

O Rock in Rio, a motivação zero e a distração total

(I can't get no) satisfaction 


http://psicologiadospsicologos.blogspot.com.br/2010/08/i-cant-get-no-satisfaction-volume-2.html

Os 30 chegaram com tudo. Em troca de alguma experiência de vida e dos quilos a mais, percebi que eles levaram embora um tanto da minha disposição e ânimo para algumas coisas, especialmente no que se refere a entretenimento. Foi com surpresa que não tive vontade de ir ao Rock in Rio este ano. Eu, exímia superadora de limites e atravessadora de fronteiras para ir a shows e festivais de todos os tipos, me vi sem ânimo até para assistir ao RiR pela TV. Assisti a alguns trechos de shows e foi tudo. Dormi antes, dormi durante, acordei com uma música ou outra, e pronto, passou. Vi fotos de pessoas lá e me deu sono. Tudo bem que se no line up estivessem nomes como Counting Crows, Keane, Blur, um Noel Gallagher que se preze, apesar de não terem muito a cara do festival, eu até faria um esforço. Apesar do que eu troquei o Keane este ano por uma viagem a Londres e estou prestes a trocar o Blur de novembro em São Paulo por qualquer programinha meia boca, porque é em São Paulo e porque os ingressos já se esgotaram e estão uma fortuna na mão de cambistas. [A quem eu quero enganar, eu estou é com preguiça mesmo.]

Mas a verdade é que nessa minha onda de desmotivação eu tenho pensado muito sobre distração. Por que precisamos nos distrair o tempo todo? E nos distrair de quê, afinal? Tenho lido um pouco de/sobre Schopenhauer, o que também tem me levado a refletir um tanto sobre isso. Esses alemães com influências orientais me encantam. Schopenhauer, inspirador de Nietzsche, Hesse e Thomas Mann e um dos primeiros defensores dos direitos dos animais na Europa (mil motivos para amá-lo) via a arte como solução para as dores do mundo. "A arte é uma das raras fontes de luz e consolo em meio à noite da existência mundana." Não muito otimista, nosso amigo chegou à conclusão de que o livre arbítrio é nada mais do que uma ilusão, e que o homem é um ser à mercê das próprias emoções e desejos. E alguns séculos depois, concluo que o desejo de distração nos dirige praticamente o tempo todo. Não importa o que fazemos, é praticamente impossível nos concentrarmos numa só atividade. Uma olhadinha no facebook, no celular, na TV, e no final do dia contabilizamos uma quantidade assustadora de tempo perdido com coisas que não vão nos acrescentar praticamente nada na vida. E, ainda que tendo plena consciência disso, seguimos esse ritual diariamente.

Meu pai me mandou um e-mail esses dias com o título "A verdadeira essência do nosso dia a dia é distração total". Ao abri-lo, me deparei com um texto de Zeca Camargo, publicado no seu blog no G1. O trecho mencionado no título é da introdução do livro novo de 
Jonathan Franzen, "The Kraus Project", que reúne a obra do austríaco Franz Kraus. Fui mais além e li a matéria do "The Guardian" sobre o livro (lógico que já sondando como consegui-lo). Percebi que o Kraus já tinha chegado à mesma conclusão que eu desde o século passado, quando havia muito menos distração do que hoje, diga-se de passagem. 

Juntando tudo, poderia afirmar que o homem é um escravo da busca por distração. E pior, o que nos distrai hoje, amanhã não terá mais o mesmo poder de sedução, como o Rock in Rio não é mais para mim grandes coisas, então precisaremos buscar novas distrações em meio às obrigações do dia a dia. Precisamos recorrer cada vez mais à arte, como sugeriria Schopenhauer, ou ao que mais nos estimular, para fugir da dura realidade que não podemos escolher. Temos que preencher cada intervalo, cada segundo entre uma obrigação e outra, ou mesmo durante as tarefas que temos que executar, dividindo nossa atenção e rendimento para aliviar o cérebro do que não podemos fugir. Afinal, do que tanto precisamos fugir? Será a resposta a mesma para todos? Será possível, com o ritmo desenfreado de desenvolvimento da tecnologia e de involução do progresso moral e espiritual, nos dividirmos menos com distrações, nos tornando mais inteiros para o que fizermos e com quem estivermos? Fica a dúvida. Chegou a alguma conclusão?



quarta-feira, 11 de setembro de 2013

terça-feira, 10 de setembro de 2013

Apesar de você

Ainda não digeri os últimos acontecimentos que me sucederam. Lá no meio do lixo eu consegui remexer a poeira e reconhecer meus caquinhos, um a um, até conseguir compor alguma coisa parecida comigo. Eu que não via perigo. A verdade é que, por mais que me confundam, apesar de toda a maldade, eu sei quem eu sou. Por mais que tenha que mexer nas peças aqui e ali, por mais que precise reposicioná-las, por mais difícil que seja enxergá-las, eu quase sempre consigo me reconhecer. E eu gosto de quem eu sou. 

Você pode não gostar da minha voz quase sempre rouca, do jeito que fico mordendo a boca e mexendo impacientemente nos cabelos; da minha camisa xadrez surrada que gosto de usar quando não quero precisar pensar, da minha inocência burra de ver mágica em tudo. Pode achar meu mundo confuso e meu humor sem sentido. Pode achar que sou desengonçada, que eu ande curvada, que tenha as pernas tortas e esteja acima do peso. Pode rir dos meus medos, dos meus anseios, dos meus segredos. Pode achar que não sou nada na vida, que sou uma pobre coitada. Sei que não tenho vocação para as boas escolhas, e vi que nem na minha intuição eu posso mais confiar. A gente fica tentando achar em que ponto não fomos bons o suficiente. Mas apesar de gente como você, eu ainda vou amar ser eu e não vou querer ser ninguém mais.

O meu maior pesadelo nunca foi com monstros, com morte e destruição. Meu maior pesadelo sempre foi entrar num ônibus e me perder, não saber onde descer. E naquele dia, depois daquela noite sem dormir, depois de ter buscado me distrair com boas lembranças, que na mente insone se transformaram num carrossel fantasmagórico de mentira e realidade, com os caquinhos de mim na mochila, ainda sem saber como montar, eu me vi num ônibus barulhento com muita enxaqueca indo para algum lugar que deveria acabar na minha casa, na minha cama, no início de tudo, de onde eu nunca deveria ter saído. Aceite com resignação qualquer coisa ruim que lhe tiver acontecido. Lembre que você foi o ladrão da paz de alguém, e no mercado das más ações seu crime deve estar bem cotado. Aceite calado. Sofra em paz. Que as suas mentiras sejam bem pagas. Ainda não sou grande o bastante para te perdoar.




segunda-feira, 9 de setembro de 2013

M.'s apologies

Falando nele, encontrei o poema de desculpas do M. 
You know, friends are like mirrors.

"Can't (or Won't) say the reason why I did what I did, It is what it is... And I'm at peace where I live. Used to say I was childish & “Just like a kid” You were right. Now I'll never be as naïve (even if I want to) as long as I live. Bent truth's, & I lied to myself as I tried to forget you, Even though you never meant to & all the shit we went through, The most positive influence my life knew, was when I met You! Couldn't help but respect you, & from time to time I'd find you on my mind, Had to know you were fine & checked you up online, Saw you were good, you can't stop a star shine. But I didn't say hi, didn't want to overstep the line. Years go by & I get a friend request, from the person in this world that I least expect, You never know what's next, Go to “Accept” & press “Yes”, “Happiness is only real when shared” so I have No Regrets!"





sábado, 7 de setembro de 2013

Grasping to the good times - The Wolfspark

Nos encontramos no fim da tarde, M. dirigindo o carro de seu pai, um conversível prata - eu nunca gravo marcas. Fomos até o Wolfspark, ou Parque de Lobos, em Merzig, que havíamos em vão procurado anteriormente e nunca achado. Chegando lá, descemos do carro e caminhamos por entre as árvores altas, um pouco desfolhadas com a chegada do frio, pelo caminho que levava aos lobos. 

Éramos praticamente os únicos no parque. Estávamos encasacados e eufóricos, como sempre, conversando sobre coisas da vida. Era bom enfim entender e ser entendida - a pausa do alemão, substituído pelo bom e velho inglês. Mas não era só isso. M. sempre teve algo de louco e de livre, de poeta, de visionário e de marginal. Ele era o que mais se aproximava de mim naquele país de coisas muito sérias e muito urgentes, com um idioma de um só the contra um de exagerados der, die e das. Era simples e era familiar. Era trégua. 

Por entre as grades, víamos alguns lobos espalhados, marrons, negros e brancos. Paramos em frente ao grupo de lobos brancos, que acabavam de receber o jantar: galinhas vivas, içadas por uma gaiolinha amarrada com cordas, até então ignoradas por eles. Esperamos um pouco para talvez presenciar o espetáculo carnívoro nada bonito, mas curioso, dos lobos famintos destroçando as aves, o que não aconteceu e nos fez seguir mais adiante. 

Foi quando exatamente às seis horas da tarde todos os lobos romperam o silêncio com um coro de uivos em uníssono. Arrepio. Deu para notar que a quantidade de lobos ali era imensa, ou pelo menos foi a impressão causada pelo espetáculo. Andando mais à frente, qual não foi a nossa surpresa ao nos depararmos com a figura lendária de Werner Freund, o estudioso de lobos e criador do parque, que sob os olhares atentos de sua esposa encontrava-se dentro de uma das jaulas, cercado de lobos marrons, como se fosse um deles. Acenamos para ele, que nos ignorou friamente, como os lobos haviam ignorado as galinhas anteriormente. Aquele homem havia mesmo se tornado mais lobo do que gente - não que eu me admirasse que naquele país alguém preferisse mesmo ser lobo. 

Seguimos pelo caminho de volta, ainda extasiados por tudo o que vimos e ouvimos. Entramos numa cabana e tomamos uma cerveja servida praticamente na temperatura ambiente, como de praxe. Conversamos um pouco mais antes de partir. 

E é com a lembrança dessa tarde única e espetacular que eu acalmo o meu coração e finalizo o meu dia, já que a tosse não me deixa dormir.






quarta-feira, 28 de agosto de 2013

A Wolf at the Door

"I keep the wolf from the door
But he calls me up
Calls me on the phone
Tells me all the ways that he's gonna mess me up"


Radiohead - A wolf at the door



Só preciso de uns dias de sono profundo.




terça-feira, 27 de agosto de 2013

Textinho bobo de quem fala muito e ama sem retorno

Eu amo demais. Eu falo demais também. Talvez por ser uma apaixonada sem limites pelas palavras, lidas, contadas, sentidas, expostas, encolhidas, respiradas. Mas palavras só existem quando costuradas por ondas sonoras ou desenhadas no papel em branco. Ou como mágica, dedilhadas no clec clec do teclado. Na mente, elas são só retalhos de imaginação; stratus querendo virar cumulus nimbus. Pois bem. Não sei se amo mais do que falo ou se falo mais do que amo. Mas me ensinaram a não falar tanto, que palavras saturam, cansam, enjoam, estragam. A manter a magia do silêncio, invólucro misterioso do sentir. A trocar o falar por sorrir, a amar mais e falar menos. Mas é com palavras que o amor transborda de mim - dói mantê-lo quietinho no peito. Amor trancado no peito é passarinho na gaiola, é sapato apertado. Então eu derramo esse amor na tela em branco, deixo-o guardado fora de mim. E vou adoçando, colherada por colherada, pra não estragar a receita. E eu espero que palavras retornem, enfim. Fico na janela esperando meu pombo correio voltar cheio de novidades, mas ele nem sempre vem. Às vezes ele vem de manhãzinha me visitar, junto com o sol nascente, trazendo boas novas e tornando doce o resto do dia. Outras vezes, passam-se dias e dias sem que eu receba uma linha. Muitas vezes acho que ele esqueceu o caminho de casa, quebrou a asa, que nunca mais vai voltar. E, exausta, digo: desisto! A partir de agora, nem clec clec, nem resc resc, nem blá blá blá. Vou pra cama resoluta, prometendo seguir muda. E cumpro a promessa até acordar.





segunda-feira, 19 de agosto de 2013

"Deste modo, cheio de pensamentos e ressonâncias musicais, com o coração carregado de tristeza e de desesperados anseios de vida, de realidade, de sentido, de tudo o que havia perdido e não podia mais recuperar, cheguei por fim à casa, subi minha escada, acendi a luz do quarto de estudos e tentei em vão ler um pouco, pensei no encontro que havia marcado para amanhã à tarde no Cecil-Bar, e senti rancor não só contra mim mesmo, como também contra Hermínia. Embora pensasse bem e fosse bondosa, embora fosse um ser maravilhoso, podia ter feito melhor se me deixasse perecer em vez de me haver arrastado a este mundo confuso, estranho, agitado, no qual sempre seria um estrangeiro e onde o que eu tinha de melhor se havia rebaixado e sofria amargamente."

O Lobo da Estepe




sábado, 17 de agosto de 2013

"Não te soltarei enquanto não me abençoares."

Eram as palavras da luta de Jacó com o anjo: "Não te soltarei enquanto não me abençoares."

Demian, Hermann Hesse

Delacroix, "Luta de Jacó com o Anjo"


O trecho bíblico da luta de Jacó com o anjo sempre me intrigou. Para mim, ele representa a luta solitária pela iluminação. É a árdua batalha travada pelo "exército de um homem só". Ele me lembra de perder menos tempo julgando, exigindo, esperando dos outros, quando no final cada um carrega sozinho seu fardo. É somente entre mim e Deus. 

quarta-feira, 10 de julho de 2013

"A única realidade é aquela que se contém dentro de nós, e se os homens vivem tão irrealmente é porque aceitam como realidade as imagens exteriores e sufocam em si a voz do mundo interior. Também se pode ser feliz assim; mas quando se chega a conhecer o outro, torna-se impossível seguir o caminho da maioria. O caminho da maioria é fácil, o nosso é penoso." 

Trecho de Demian, de Hermann Hesse

Um minuto de silêncio pelos corações ainda sufocados e calados à força. A redenção está próxima.

http://nasuisaidel.deviantart.com/

segunda-feira, 24 de junho de 2013

A alma hipertrofiada


Nos bastidores da revolução...

"O rapaz que aos vinte anos se inscreve no partido comunista ou que, de espingarda na mão, se junta à guerrilha das montanhas, está fascinado pela sua própria imagem de revolucionário: é ela que o distingue de todos os outros, é ela que o faz transformar-se em si próprio. Na origem da sua luta encontra-se um amor exacerbado e insatisfeito pelo seu eu, ao qual ele deseja dar contornos bem nítidos, antes de o enviar (realizando o gesto do desejo de imortalidade, tal como o descrevi) para o grande palco da História sobre o qual convergem milhares de olhares: e nós sabemos já, pelo exemplo de Mychkine e de Nastassia Philippovna, que sob os olhares intensantemente assestados nela a alma não pára de crescer, de inchar, de ganhar volume, para finalmente levantar voo em direção ao firmamento como um aeróstato magnificamente iluminado. 
O que incita as pessoas a erguerem o punho, a pegarem numa espingarda, a defenderem juntas causas justas ou injustas, não é a razão, mas a alma hipertrofiada. É este o carburante sem o qual o motor da História não poderia funcionar e à falta do qual a Europa teria ficado deitada na relva, a olhar preguiçosamente as nuvens que pairam no céu. "

Milan Kundera, A Imortalidade

domingo, 23 de junho de 2013

A Lei do Eterno Retorno



“E se um dia ou uma noite um demônio se esgueirasse em tua mais solitária solidão e te dissesse: “Esta vida, assim como tu vives agora e como a viveste, terás de vivê-la ainda uma vez e ainda inúmeras vezes: e não haverá nela nada de novo, cada dor e cada prazer e cada pensamento e suspiro e tudo o que há de indivisivelmente pequeno e de grande em tua vida há de te retornar, e tudo na mesma ordem e seqüência – e do mesmo modo esta aranha e este luar entre as árvores, e do mesmo modo este instante e eu próprio. A eterna ampulheta da existência será sempre virada outra vez – e tu com ela, poeirinha da poeira!“ Não te lançarias ao chão e rangerias os dentes e amaldiçoarias o demônio que te falasses assim? Ou viveste alguma vez um instante descomunal, em que lhe responderias: “Tu és um deus e nunca ouvi nada mais divino!” Se esse pensamento adquirisse poder sobre ti, assim como tu és, ele te transformaria e talvez te triturasse: a pergunta diante de tudo e de cada coisa: “Quero isto ainda uma vez e inúmeras vezes?” pesaria como o mais pesado dos pesos sobre o teu agir! Ou, então, como terias de ficar de bem contigo e mesmo com a vida, para não desejar nada mais do que essa última, eterna confirmação e chancela?” 

A Gaia Ciência, Nietzsche


Não há outro jeito. Vou me sentar à mesa, vão todos beber e rir e se sentir completos com fumaça nos pulmões e álcool a correr pelas veias. Vão contar histórias infames e arreganhar seus dentes amarelados ao gargalhar, embriagados e regurgitando desaforos. Juro que vou tentar acompanhar, vou forjar um sorriso aqui e ali, mesmo que nada daquilo faça parte de mim. Juro que a todo custo tentarei estuprar minha personalidade até meus limites. A certa hora, meu sono vai tomar conta e eu vou precisar me afastar. Ou não vai ser sono, vai ser fúria mesmo, e todo o teatro vai desabar, a lona do circo vai cair, o fogo vai consumir o que havia ali, e vou seguir tateando em meio à fumaça o caminho de fuga, buscando a linha tênue que ainda me liga ao que é meu. Vou fatidicamente retornar ao meu mundo, onde posso finalmente ser eu. Vou voltar a ser Agnes, a ser Lobo da Estepe, a ser Tamina, a ser Laura, a ser Sidarta, a ser Demian, a ser Sabina, às paisagens só minhas, às músicas mais que repetidas, a esse mundo por tão poucos compartilhado. É dolorido que meu mundo seja outro planeta. Sempre vai ser dolorido e ilegítimo abdicar do meu mundo para tentar fazer parte do mundo dos outros. Posso no mínimo visitá-los, esses tantos planetas mais ou menos iguais e tão estranhos, mas nunca vou habitá-los. Juro que vou daqui em diante procurar planetas em que eu reconheça ao menos uma rua, ao menos uma árvore seca. Que compartilhem com o meu uma paisagem que seja. Mas nesse eterno ciclo torturante de tentar fazer parte, tudo vai e tudo retorna. 
Veja só essa grande farsa que é viver. Por Deus, eu não vou mais mentir para mim.


"Ela não podia nem se atormentar com suas guerras, nem alegrar-se com suas festas, porque estava impregnada pela certeza de que nada disso era problema seu."

A Imortalidade, Milan Kundera




quinta-feira, 13 de junho de 2013

"Come outside, she said, I think I’m leaving tomorrow afternoon, I’m going far away from here. Come outside, she said, come outside with me, put away your fears, you and me were not meant for bedrooms, you and me were not meant for homes, she said, I’m leaving here tomorrow, please come with me darling, I don’t want to go alone. Come outside, she said, climb out your window, come outside, before the world gets any colder, you and I get too much older, come outside, she said, well, come outside, she said, hey climb out your window, come outside before my momma knows I’m gone, your daddy thinks you're home alone, come outside and run away with me, she said, come outside, she said, climb out your window, come outside if you can't get away, find me some other day, if not today, I'll be on my way. You and me weren’t meant for bedrooms, you and me weren’t meant for these small town afternoons, you and me were meant for leaving, we were meant for highways and sunsets and all summer months so come away come away come away come away outside she said and runaway runaway runaway with me"

Trecho desconhecido incluído na versão ao vivo de Round Here, do Counting Crows, de 10/04/2013 na Sydney Opera House 

http://www.youtube.com/watch?NR=1&v=6PMxpdPLm-k&feature=endscreen

terça-feira, 23 de abril de 2013

Poesia do dia a dia

Coração em rota de fuga

Belamente observado e registrado por um colega de trabalho dia desses no navio. 





Me remete a um trecho da poesia A Flor e a Náusea, de Carlos Drummond de Andrade:

Uma flor nasceu na rua! Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.
Uma flor ainda desbotada ilude a polícia, rompe o asfalto
Façam completo silêncio, paralisem os negócios, garanto que uma flor nasceu.
Sua cor não se percebe. Suas pétalas não se abrem.
Seu nome não está nos livros. É feia.
Mas é realmente uma flor.
Sento-me no chão da capital do país às cinco horas da tarde e lentamente passo a mão nessa forma insegura.
Do lado das montanhas, nuvens maciças avolumam-se.
Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em pânico. É feia.
Mas é uma flor.

Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.

Não é uma flor, é um elástico. Mas é a única poesia que brota desse chão de metal.


E você, sabe enxergar a poesia escondida no seu dia? 

quinta-feira, 21 de março de 2013

Mais dia, menos dia

Assim vai terminando mais um dia no navio. Dias a fio, menos um na contagem regressiva pra ir embora.  E ainda nem deu tempo de sentir falta lá de fora. Já foram seis longe de casa. Faltam nove. E em meio à matemática da saudade, é a paz dos dias que me move, ainda que corridos. São sorrisos nos corredores, os chocolates divididos, as brincadeiras do dia a dia. Ainda bem que embarca junto a alegria. Gosto de ver o mar sem fim de qualquer canto, dos barquinhos passando, sentir o vento soprando, trazendo da terra a vontade e levando do mar a falta que a gente sente. É a paisagem insistente de nuvens, pássaros, oceano e aço. É sofrimento e cansaço. É ser ausente. É querer mergulhar no azul profundo, sair nadando, largar tudo. É metade do ano isolada do resto do mundo. É a emoção à deriva. É a indecisão em voltar. Mas nem assim é tão ruim. E o sol vai se pondo quente e a brisa fria vem chegando. E assim vai terminando no navio mais um dia.






"It's the sour and the sweet. And I know sour, which allows me to appreciate the sweet."

Vanilla Sky

quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

Navio fantasma

Pintura de Anne Penman Sweet

“Quanto mais pesado o fardo, mais próxima da terra está a nossa vida, e mais ela é real e verdadeira. Por outro lado, a ausência total de fardo faz com que o ser humano se torne mais leve do que o ar, com que ele voe, se distancie da terra, do ser terrestre, faz com que ele se torne semi-real, que seus movimentos sejam tão livres quanto insignificantes. Então, o que escolher? O peso ou a leveza?”*

Debruço a estibordo do navio, no meio de uma escuridão que une mar e céu no mesmo abismo infinito. Os olhos aos poucos vão se acostumando à ausência de luz e consigo identificar um leve brilho prateado sobre as águas iluminadas por uma lua distante, emoldurada por nuvens caprichosas cheias de voltas. Vejo as luzes de três barcos. Um bastante próximo, com uma linha de pesca esticada adentrando o mar calmo; um bem mais longe, com uma luzinha piscando num compasso quaternário, e as luzes distantes do que parece ser um navio bem grande, provavelmente outro FPSO, quase na linha do horizonte. Do meu lado esquerdo, a chama tímida do flare. Bem abaixo de mim, a luz prateada do navio onde estou refletida na água, como se centenas de peixes luminosos nadassem ali.

Penso na minha decisão, tão postergada, mas finalmente tomada. Agora já era – pensei. Fiz a minha escolha e abandonei mais uma pessoa. E sempre que eu deixo alguém, sinto-me estranhamente leve, e ao mesmo tempo com uma estranha vontade de ligar, pedir desculpas e tomar a decisão contrária logo em seguida. Sinto falta do peso.

Tenho minha dúvida se esse é um passado que se repete, como se Deus me desse mais uma vez a chance de tomar a decisão correta, de refazer uma lição que ainda não foi totalmente aprendida. Da última vez, eu também agi pela razão, o que deixa essa decisão com cara de erro reincidente. Hoje, vejo que não foi a decisão correta, mas nenhuma era. Hoje, vejo que a melhor decisão teria sido ter ficado sozinha, assim como hoje sei que o melhor caminho a se tomar é um retorno. Não tenho medo de ficar sozinha; tenho pavor é de uma união infeliz. Hoje, vejo que a solidão teria me poupado de muitos problemas. Aprendi que a solidão pesa muito menos do que um amor mal correspondido.

Penso em como me tornei insensível depois daquele cara. Penso em como a pessoa que eu mais pude amar pôde não me amar de volta, como se eu esperasse alguma justiça do mundo.  Em como sempre ponho um fim a tudo com um mínimo sinal aparente de fracasso, pois vi e vejo pessoas tão próximas viverem uma vida infeliz por nunca terem tomado decisão alguma. E viver com o peso do mau exemplo é algo muito sério e muito urgente. É não permitir se omitir, ou seria perseguida pela minha consciência como por cães na neve, sem poder correr, tropeçando a cada três passos e sentindo seus latidos cada vez mais próximos e seus bafos quentes na minha nuca.

Escapei dos cães essa noite. Peço a Deus que ele não sofra, pois eu já estive no seu lugar, e como estive. Foi uma história curta, porém bonita. Tivemos bons momentos, mas é que bons momentos não me comovem mais. Eu desaprendi a amar, e deixá-lo talvez seja a forma mais sincera e legítima de amor que eu consiga praticar agora. Estou salvando-o do apego a um fantasma sem coração. Me sinto grande e insensível. Me sinto uma alma sem corpo flutuando na noite. Me sinto parte daquela escuridão. E essa leveza, essa sensação de não ser de carne, essa falta de sangue correndo nas veias, essa fraqueza, esse nada todo só pode ser digno de um fantasma, habitando esse navio ancorado, sem rumo, sem direção.

"Mas era justamente o fraco que deveria saber ser forte e partir...”*


*Trechos de "A Insustentável Leveza do Ser", de Milan Kundera

domingo, 13 de janeiro de 2013

A (nem tão) insustentável leveza do meu domingo

Depois de ser atormentada por um telefone que não parou de tocar a madrugada inteira, resolvi desligá-lo pela manhã (quando tive forças pra isso) e saí pra caminhar e fotografar, procurando belas imagens, inspirada pelo livro "A Insustentável Leveza do Ser". Imaginei um lenço colorido solto no ar, uma flor frágil num muro de pedra, algo que trouxesse leveza ao meu último domingo de janeiro em terra depois de uma madrugada pesada de sono interrompido por um celular insistente. 

Resultado do passeio: minha pressão baixou bruscamente devido ao calor (deveria ter ido mais cedo), me perdi no caminho (não deveria ter mudado o trajeto). Inconvenientes à parte, consegui algumas boas imagens inusitadas. Nada de lenço voando ou flor num muro de pedra, mas encontrei uma biruta colorida de peixe e a leveza das formas de metal retorcido de um pesado portão enferrujado. 

E pra que ter certeza do que se vai encontrar pelo caminho? Temos algumas pistas, mas nada que determine o total sucesso ou o resultado final de uma escolha. Tomei esse pequeno exemplo do meu passeio de domingo pra refletir sobre uma dúvida maior que tem me atormentado por esses dias, o que é um peso inútil de se carregar. Abandonei-a então numa esquina qualquer enquanto procurava o caminho de casa. Acho que encontrei a leveza de que eu precisava.


"Não existe meio de verificar qual é a boa decisão, pois não existe termo de comparação. Tudo é vivido pela primeira vez e sem preparação. Como se um ator entrasse em cena sem nunca ter ensaiado. Mas o que pode valer a vida, se o primeiro ensaio da vida já é a própria vida? É isso que faz com que a vida pareça sempre um esboço. No entanto, mesmo "esboço" não é a palavra certa porque um esboço é sempre um projeto de alguma coisa, a preparação de um quadro, ao passo que o esboço que é a nossa vida não é o esboço de nada, é um esboço sem quadro."



A Insustentável Leveza do Ser



segunda-feira, 7 de janeiro de 2013

Um ano em 14x14


Família offshore

O ano passou de 2012 pra 2013 no calendário e eu nem vi. Aprendi a contar minha vida em escalas e a separar os dias em folgas e não-folgas. Nesse um ano de embarque eu dancei a vida num compasso de 14x14. Vários feriados foram passados como dias de trabalho normais, com a tristeza de estarmos presos num navio enquanto amigos e familiares celebravam com churrasco, praia e cerveja o dia de folga, mas com o alívio do prêmio de consolação para aqueles que ganham dobrado pelo dia. 

E a gente lá, unido, rindo da arvorezinha de Natal enfeitada com palitos de dente, contando "causos" e fazendo piadas um do outro, do jeito engraçado de falar português dos expats, das gírias de gente de todo canto do Brasil, das traduções ruins de um e do português pior ainda do outro. Um comentário errado no Facebook vai parar na parede do fumódromo e vira escárnio público. Prenderam um dia minha mochila com uma braçadeira de plástico numa cadeira da sala de controle, amarraram o macacão esquecido do outro no teto do banheiro. Muito cuidado ao deixar o prato na mesa durante as refeições quando sair pra buscar algo, pois fatalmente sua comida será entupida de pimenta pelos coleguinhas do lado, que farão cara de paisagem ao você voltar.

A maioria faz o que pode pra tornar o ambiente melhor: o Lhamito aparece numa pose diferente cada vez que arrumam o meu camarote; o rádio operador comunica a chegada do helicóptero de uma maneira toda especial: 5 minutes awaaaay! E assim passamos os dias. É enclausurado, mas a gente arruma um jeito de se divertir e rir até a barriga doer quando dá, em meio à tensão de se trabalhar sobre uma bomba-relógio. E a lição mais importante do ano foi essa: buscar a alegria nos lugares mais improváveis e transformar em paraíso os lugares mais absurdos. É tudo uma questão de esforço e ponto de vista.

Arvorezinha de Natal estilizada

Ceia de Natal pra embarcado nenhum botar defeito


quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

On poetry




"Poetry had started as a pastime on a wet afternoon, a game to play. I didn’t realise then, as I slotted in rhymes to names, writing on the red chenille tablecloth, that I was playing with a dangerous substance, one that would take its revenge on me if I didn’t honour it with work.

What’s at stake with poetry for me is awareness of my own life. Without writing, I’m unable to exercise a kind of inner eye, a moral vision which allows me to make sense of how I’m living. Everybody carries around in their heads a store of images, rules, scraps of experience which help them to make choices at important junctures in their lives. This is the raw material of poetry and everybody treasures it, even if they have no intention of turning it into art.

This source is like an inner spring, which takes a great deal of time to trickle into a pool at which you can drink. It needs privacy to build up, a protective wall around it. To be without this inner nourishment is to be a barren person, able only to react to life as you drift through it, with no inner direction. Draw too much on it and you exhaust yourself. If you don’t use it, the water becomes stagnant and you can’t see anything through it."

Sunbathing in the Rain, Gwyneth Lewis

Muito mais do que sobre depressão, mas sobre o mundo interior. Daqueles livros que a gente sai grifando, e quando vê já marcou quase tudo. Não consigo parar de ler.