domingo, 29 de julho de 2012

Sapatos descasados


Tinha mais ou menos doze anos quando um dia se viu só, tendo sido abandonada subitamente pelo pai de Franz. Franz suspeitava que alguma coisa grave havia acontecido, mas sua mãe simulava o drama com palavras neutras e medidas para não traumatizá-lo. Foi nesse dia, quando saía do apartamento para juntos darem um passeio pela cidade, que Franz notou que sua mãe estava com sapatos descasados. Ficou confuso, quis avisá-la, temendo ao mesmo tempo magoá-la. Ficou com ela duas horas pelas ruas sem poder despregar os olhos dos seus pés. Foi então que começou a ter uma vaga ideia do que significava sofrer.

A Insustentável Leveza do Ser, Milan Kundera

Pintura do período azul de Picasso
http://www.pablopicasso.org/blue-period.jsp


Hoje eu vi suas fotos antigas. Elas mostraram seus sonhos despedaçados e suas lutas em vão. Você parou e voltou e tomou diversos caminhos, quando era só seguir um só até o fim. Mas não, você foi feita pra recomeçar, só pra passar mais tempo na estrada. Só por passar. Vi algumas de suas conquistas. Você sorria sempre, mas eu sei que tinha muito mais por trás de uma foto bonita. Pergunto-me se não há algo de estúpido nessa história de sorrir mesmo nas adversidades, quando os sapatos descasados nos denunciam.

Eu vi quando você decidiu ficar, quando você perdeu o voo pra duas semanas depois se ver perdida e ter certeza de que tomou a decisão errada mais uma vez. Vi quando você se sentia enganada, mas ainda assim suas fotos sorridentes pareciam de contos de fadas. Hoje eu sei que era mais do que viagens e lugares. Sim, eu via seus sonhos. E você pode reclamar de tudo, menos de falta de história espetacular pra contar. Foi montanha-russa. Foi céu e inferno. Hoje eu sei que você estava doente, mas um sonho seguido a próprios passos não permite fraqueza. Uma jornada solitária não permite covardia. “Nunca desista!”, que besteira que nos ensinam!  E você seguia bravamente pelos dias com um sapato de cada cor.

Hoje eu quero te dizer que não sei pelo que devo levantar amanhã. Estou sem vontade, sem sonhos, apenas seguindo pela força das coisas, dos órgãos funcionando, dos que sem pena nos forçam a tentar a felicidade porque dependem do nosso bem-estar pra sorrir.  Sabe, eu nunca tive mesmo muito talento pra felicidade. Nunca fui muito boa nisso. Ainda vejo beleza até demais nos dias de chuva, nas músicas tristes, no lado sombrio das coisas. E o "pior", não vejo problema algum nisso. Esse blog mesmo é uma ode à tristeza, com suas devidas fugas porque nenhum ano é só feito de inverno. 

Hoje creio que como Picasso estou no meu "período azul". Olho o mundo lá fora e não tenho vontade de seguir essa ou aquela carreira; eu olho os exemplos e nenhum me inspira. As pessoas expõem felizes seus carros, suas casas, seus filhos, seus relacionamentos, mas tudo me parece uma versão made in Taiwan de um modelo de vida metafísico, que só existe no mundo das ideias. Não sinto inveja, não sinto admiração, não sinto nada. Basto-me na satisfação compartilhada de quem sabe casar os sapatos, esses raros. 

Hoje eu quero te dizer que é melhor encarar o abismo do que flutuar nesse bote inflado de utopia. Eu ainda tomo as pílulas brancas pra dormir sempre que preciso. Sim, eu sou covarde e quando posso me anestesio. Eu cresci, mas ainda tenho medo do escuro. Algumas coisas vão te perseguir por toda a vida. E sinto que sempre haverá essas noites suspensas na ordem dos dias de se revirar fotos antigas e perguntar pro espelho meu se existe alguém mais perdida do que eu.

E ainda assim, sem rumo, eu vou seguir - só não repare nos meus pés.

2 comentários:

  1. Eu também: "Hoje creio que como Picasso estou no meu "período azul". Olho o mundo lá fora e não tenho vontade de seguir essa ou aquela carreira; eu olho os exemplos e nenhum me inspira. As pessoas expõem felizes seus carros, suas casas, seus filhos, seus relacionamentos, mas tudo me parece uma versão made in Taiwan de um modelo de vida metafísico, que só existe no mundo das ideias. Não sinto inveja, não sinto admiração, não sinto nada. Basto-me na satisfação compartilhada de quem sabe casar os sapatos, esses raros." =/

    Que um dia essa sensação de ser um barquinho no meio de uma tempestade no meio do oceano melhore um pouco. Que não sejam apenas alguns dias de verão nos nossos anos. Grande abraço, Mari. Sempre torcendo por você. Lu.

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  2. Obrigada, Lu querida!
    Também sempre torcendo por você.
    E se for só inverno, mergulhemos no nosso Weihnachtsmarkt imaginário e brindemos com Glühwein mesmo assim! ;)
    Um beijo!
    Mari

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