quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

A fera (ou o homem?) da autocrítica

"Com nosso Lobo da Estepe sucedia que, em sua consciência, vivia ora como lobo, ora como homem, como acontece aliás com todos os seres mistos. Ocorre, entretanto, que quando vivia como lobo, o homem nele permanecia como espectador, sempre à espera de interferir e condenar, e quando vivia como homem, o lobo procedia de maneira semelhante

Por exemplo, se Harry, como homem, tivesse um pensamento belo, experimentasse uma sensação nobre e delicada, ou praticasse uma das chamadas boas ações, então o lobo, em seu interior, arreganhava os dentes e ria e mostrava-lhe com amarga ironia o quão ridícula era aquela nobre encenação aos seus olhos de fera, aos olhos de um lobo que sabia muito bem em seu coração o que lhe convinha, ou seja, caminhar sozinho nas estepes, beber sangue vez por outra ou perseguir alguma loba. 

Toda ação humana parecia, pois, aos olhos do lobo horrivelmente absurda e despropositada, estúpida e vã. Mas sucedia exatamente o mesmo quando Harry sentia e se comportava como lobo, quando arreganhava os dentes aos outros, quando sentia ódio e inimizade a todos os seres humanos e a seus mentirosos e degenerados hábitos e costumes. Precisamente aí era qua a parte humana existente nele se punha a espreitar o lobo, chamava-o de besta e de fera e o lançava a perder, amargurando-lhe toda a satisfação de sua saudável e simples natureza lupina."

O Lobo da Estepe (1927), Hermann Hesse

Me identifico totalmente com o trecho acima. Há dias em que a pessoa exemplar e a louca à margem que vivem em mim brigam quase o tempo inteiro. Eu sou, de fato, o meu inimigo mais implacável. Eu sei me menosprezar, me tirar do foco, me culpar com  um discurso mental enlouquecedor, me por fraca e mais fraca nos momentos onde não tenho como ir mais fundo, mais baixo que o chão.

Eu sou a tesoura que corta a corda. Eu sou a bota que pisa os dedos que seguram o corpo pesado à beira do abismo. Me pego a pensar em situações das quais não tenho controle algum como uma febre. Me deixo viciar em situações que me fazem mal, só pra me criticar mais um pouquinho depois. Não sei se isso tudo é culpa de alguma substância que falta ou que sobra, ou se vem de fora pra dentro, se é praga divina ou força do acaso. Mas prefiro dizer que a culpa é toda minha, porque bem, faz parte da minha natureza de carrasco dual da autocrítica.

Hoje me peguei nesse ciclo e sabotei a mim mesma. Estraguei meus planos de arruinar meu dia (ou pelo menos parte dele - a tarde já havia ido por água abaixo) e com um esforço descomunal desviei a atenção pra coisas mais saudáveis e menos destrutivas. Coisas que só a pílula mágica do autoconhecimento pode nos proporcionar, senhoras e senhores. A verdade é que só na autocrítica posso me melhorar, mas acho que ainda não acertei a mão no tempero amargo do autojulgamento.

Então no meio dessas fugas e descaminhos me percebi só – e ser só não é só ruim. Senti um prazer enorme em caminhar por aí sozinha. Acabei o dia com uma vontade de me fechar numa bolha com as minhas músicas que ninguém gosta, com os meus livros que só eu leio, com as minhas piadas das quais só eu rio, com as minhas filosofias nas quais só eu acredito, e dar as costas pro que restasse do mundo todo.

Esse mundo que me eu amo pouco e mal. Esse quebra-cabeça do qual sou pecinha disforme, e que sempre vai entrar em atrito com a minha personalidade deveras esquisita. E acho que quando o mundo não interferir mais, aí sim vou gostar de mim de verdade. Aí o crítico feroz talvez fará as pazes com aquela que vive à sombra do bicho papão chamado o-que -se-deve-ser-quando-crescer.

[Sei que eu não sou tão única assim, mas hoje me deixa achar que eu sou. Não me critique - eu já fiz isso por você.]



2 comentários:

  1. "Se um homem se aventura a converter numa dualidade, a pretendida unidade do eu, se não é um gênio, é em todo caso uma rara e interessante exceção. Mas na realidade não há nenhum eu, nem mesmo no mais simples, não há uma unidade, mas um mundo plural, um pequeno firmamento, um caos de formas, de matizes, de situações, de heranças e possibilidades. Cada indivíduo isolado vive sujeito a considerar esse caos como uma unidade e fala de seu eu como se fora um ente simples, bem formado, claramente definido; e a todos os homens, mesmo aos mais eminentes, esse rude engano parece uma necessidade, uma exigência da vida, como o respirar e o comer."

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  2. http://allesubermusik.blogspot.com.br/2009/08/habito-das-oposicoes.html

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