quarta-feira, 2 de maio de 2012

Sonho de uma flauta



Esse é um trecho do conto "Sonho de uma flauta", do Hermann Hesse, que dedico ao meu tão querido amigo Glauco, que faz aniversário hoje, e a quem também está na estrada da busca espiritual. É sobre um homem que recebe de seu pai uma flauta e sai pelo mundo, vivenciando as belezas e desafios da estrada. Até que segue seu caminho num barco sobre um rio, escuta o canto lamurioso do barqueiro e decide retornar. Aqui está o desfecho, um diálogo entre o homem e o barqueiro.


Escutei e fiquei bem quieto, não tinha mais nenhuma vontade dentro de mim além da vontade do estranho. Seu olhar repousou sobre mim, tranqüilo e com uma certa bondade triste, e seus olhos cinzentos estavam cheios da dor e da beleza do mundo. Ele me sorriu, e então achei nele um coração, e pedi na minha dor:

- Ah, vamos voltar! Sinto medo aqui na noite e queria retornar para onde posso encontrar Brigite, ou para a casa de meu pai.

O homem levantou-se e espiou a noite, e sua lanterna iluminou claramente seu rosto magro e firma.

- Para trás não há caminho - disse sério e amável. - A gente precisa ir sempre para a frente, quando quer penetrar no mundo. E da garota dos olhos castanhos já tiveste o melhor e o mais belo, e quanto mais longe estiveres dela, melhor e mais lindo isso vai se tornar. Ainda assim, segue sempre para onde quiseres, vou te ceder meu lugar no leme!

Eu estava triste demais, e, entretanto, vi que ele tinha razão. Cheio de saudade pensei em Brigite e na minha terra e em tudo que me fora próximo e luminoso e que pertencera, e que eu agora havia perdido. Mas queria tomar o lugar do desconhecido e dirigir o leme. Assim devia ser.

Por isso levantei-me em silêncio e fui andando pelo barco até o lugar do leme, e o homem veio em silêncio ao meu encontro, e quando já estávamos perto um do outro, olhou-me firmemente no rosto e entregou-me sua lanterna.

Entretanto, quando me sentei ao leme com a lanterna do meu lado, estava sozinho no barco; percebi isso com profunda estranheza, o homem desaparecera, e, contudo, eu não estava amedrontado, já pressentira isso. Pareceu-me que o lindo dia da caminhada e Brigite e meu pai e minha terra tinham sido apenas um sonho, e que eu era velho e aflito, e que desde sempre e sempre viajava sobre esse rio noturno.

Compreendi que não devia chamar pelo homem e a percepção da verdade atingiu-me como a geada.

Para certificar-me do que imaginava, debrucei-me sobre a água e ergui a lanterna, e do escuro espelho de água um rosto duro e sério me olhou com olhos cinzentos, um rosto velho, sábio, e vi que aquele era eu.

E como nenhum caminho voltava atrás, continuei seguindo sobre a água escura dentro da noite.

Para complementar, um rio que é tão seu: o Rio Sana. Parabéns, caro amigo!


O conto na íntegra:


http://www.rubedo.psc.br/Artlivro/soflauta.htm



Um comentário:

  1. No dia do meu aniversário eu não queria ver ninguém. Queria estar apenas comigo mesmo e refletir sobre a Estrada. Relembrar os erros e acertos dos muitos passos já dados. Das decisões e indecisões. Das consequencias e inconsequencias que tanto me marcaram.

    No dia do meu aniversário eu não recebi muitos presentes. Mas todos que recebi, recebi com carinho. Um deles, entretanto, tocou me de forma singular e especial: O seu texto, querida Mariana. Me identifiquei tanto que quando percebi, haviam lágrimas em meus olhos.

    Muito obrigado por todo o carinho e por tudo que compartilhamos, mesmo estando tão distantes.

    A Estrada se torna um lugar muitíssimo mais agradável na sua companhia. Ainda nos veremos novamente por ela.

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