sexta-feira, 8 de junho de 2012

Dois lados


Sob a evocação dessas luzes e dessas atmosferas, dessas palavras frias e desdenhosas, dessa gente cheia de escárnio e afetação, toda a música e alegria do dia esvai-se como uma vela apagada, a esperança me parece perdida para sempre, e toda a verdade que eu já tenha descoberto e conhecido parece-me falsa."

07 de junho, 10:23 PM. Vou começar com jeito de relatório policial, mas porque quero ser bem descritiva; porque quero narrar uma conversa que tive com uma pessoa querida, e se digito fervorosamente de madrugada tendo que levantar cedo amanhã é porque não quero perder a memória dessa noite. Quero imortalizá-la na forma de texto, e impedir assim que ela desapareça na tela branca do esquecimento.

Estávamos sentados no refeitório do navio. Contei um pouco do livro que eu estava lendo, e não sei como chegamos ao assunto “eu” - provavelmente porque a minha cara de desânimo tem sido contagiante. Falava sobre como eu sou hipersensível, sobre como tenho me sentido mais castigada do que o normal por eventos externos.  Da minha decisão de não me envolver mais com ninguém até eu estar totalmente pronta, até eu sentir que eu me basto e que não vou criar nenhuma relação de dependência com ninguém. Porque qualquer envolvimento tem sido para mim uma porta aberta para coisas que eu não preciso viver agora. Porque as perdas tem doído mais do que o normal. Essa vulnerabilidade eu preciso manter trancada, pelo menos por um tempo, sabe-se lá quanto. Eu não sei até que ponto pode-se evitar uma dor: uma faca fincada na perna dói, quer você queira, quer não. Por isso tenho mantido o esfaqueador do lado de fora e ponto.

Foi quando ele me respondeu:

- Essa vulnerabilidade tem a ver com as experiências passadas. Você é uma pessoa fantástica. Já viajou para um monte de lugares, já fez um monte de coisas, fala algumas línguas, canta... Por isso eu acho que você é muito crítica com você mesma. Você se cobra demais. 



Eu perdi meus pais e meu irmão num acidente de carro quando tinha dez anos.

(Essa frase me atingiu como um caminhão. Pausa para a Mariana chorar e se sentir estúpida frente aos próprios problemas, tão ínfimos perto dos problemas dos outros).

- Eu tive que virar adulto muito cedo. De uma hora para a outra eu virei o irmão mais velho, fui morar com os meus tios. Eu sinto que perdi uma parte importante da minha vida. Eu vejo as pessoas fazendo coisas, e eu não tive nada disso; eu tive que conseguir meu dinheiro muito cedo. E a dor existe, mas ela se torna suportável com o tempo. Ela se transforma em outra coisa. Mas não adianta querer evitá-la: ela está ali e pronto. O que você aprende é o que fazer com essa dor. Eu aprendi a separá-la dos outros eventos da vida. Se por um lado você fica mais endurecido diante da vida, por outro você cria uma defesa. Sabe, eu penso neles todos os dias.

(...)

Se alguém "supera" algo tão terrível, quem sou eu para não superar uma bobagem como uma decepção qualquer? Não acho sinceramente que o que me faltou na vida tenha sido um acidente trágico para aprender o verdadeiro valor das coisas. Mas isso certamente tornou meu amigo mais forte e menos vulnerável. Porque na minha opinião ele já passou pelo pior; o que mais poderia machucar tanto?

A minha sensibilidade exacerbada é responsável pela minha criatividade, pela compaixão, pela minha imaginação, pela minha capacidade de mergulhar nos livros e na música. Mas a minha dor existe, e eu não sei o que fazer com ela. Ela por vezes me impede de respirar, de levantar da cama, de enfrentar o dia. É exagerada, eu sei. Eu quero viver de forma mais leve, e para isso aqui estou eu jogando fora tudo o que é supérfluo e não me serve mais. Vou viver com o que sobra. Estou aprendendo a olhar para as coisas de outra forma, mas ainda não aperfeiçoei a técnica. Fugir das coisas tem sido a minha forma de defesa mais covarde e legítima. Eu tenho sorte, tenho uma família, tenho muitos amigos, tenho algum talento. Isso deveria bastar.

É o sentido da morte e da solidão, o conhecimento da fugacidade de seus dias, e o enorme fardo ameaçador de sua tristeza, que cresce sempre, que nunca cessa, o que torna a felicidade gloriosa, trágica e absolutamente preciosa"

Thomas Wolfe


3 comentários:

  1. Impossivel nao relacionar um pouco do seu texto com o que tenho lido do MK e do que tenho identificado comigo mesmo...
    Nossas batalhas sempre serão mais pesadas...não importa o quao racionalmente comparemos com as tragedias alheias... :(
    Seu post...pede um post...
    No mais...boa sorte querida!!

    ResponderExcluir
  2. Queria eu ter tido essa conversa com você e teria muito mais a ouvir a aprender do que apenas ver sua "cara de desânimo contagiante". Tenho percebido que a única maneira de parar de cantar "but I'm still haven't found what I'm looking for" é aceitar essa vulnerabilidade e fazer dela sua força e seu motivo para reiniciar a busca, dessa vez para dentro de si mesma. Mas o seu forte amigo tem razão: perdoe-se. Não é porque os problemas dele foram muito mais graves que os seus merecem menos atenção de si, sobretudo porque é em si que eles doem. Perdoar, amar e aceitar. Têm sido, para mim, as únicas receitas possíveis. E nessa tarefa, ler o blog tem ajudado enormemente!

    ResponderExcluir