segunda-feira, 12 de setembro de 2011

Quem sou ela

“A doida do miosótis” é personagem da mente de Agnes, que por sua vez é uma personagem do livro “A Imortalidade” de Kundera (gosto dessa história de personagem dentro de personagem). É alguém que, cansada da feiúra do mundo, anda com um vaso contendo uma única flor de miosótis na frente do rosto, a fim de nada mais olhar além desse único ponto azul, tido como o  “último traço, quase invisível, da beleza”. É o que a Agnes imagina ser seu próprio fim.

Ela pensou: um dia, quando a invasão da feiúra tornar-se inteiramente insuportável, comprará no florista um só raminho de miosótis, pequeno caule encimado por uma flor miniatura, sairá com ele na rua, segurando-o em frente ao rosto, o olhar fixado nele a fim de nada ver, a não ser esse belo ponto azul, última imagem que quer conservar de um mundo que ela deixou de amar. Irá, desta forma, pelas ruas de Paris, as pessoas logo saberão reconhecê-la, as crianças correrão atrás, zombarão dela, jogarão coisas e Paris inteira irá apelidá-la: a doida do miosótis... [Milan Kundera, A Imortalidade]
Sinto vontade de aderir a essa ideia às vezes. Esse mundo de relacionamentos descartáveis e pessoas substituíveis, onde ninguém mais importa verdadeiramente e tudo é uma versão de alguma coisa, onde tudo perdeu a originalidade, onde não se busca solução para os grandes problemas da humanidade, onde buscamos ávidos pela próxima distração enquanto o mundo desaba lá fora e tudo se torna normal em frente a uma tela de computador, onde somos teletransportados para dentro de um ambiente artificial enquanto tanta sacanagem acontece e ninguém faz nada pra mudar. Está todo mundo em transe. Está todo mundo anestesiado.
Ninguém parece se importar em ter um emprego deprimente a fim de acumular bens. Será que dói mais em mim do que na grande maioria viver uma porcaria de rotina em que os talentos são massacrados na repetição de atividades mecânicas e sem expressão? Quem se mantém normal em meio a essa loucura é realmente louco. Quem não acaba deprimido ou quem se nutre de tanta porcaria sem sentir vazio algum dentro de si só pode ter problemas mentais. Tenho medo de acabar como uma hippie ou como a doida, mas tenho mais medo ainda de não acabar como ela. Tenho medo de acabar me enquadrando nessa sociedade de superfície.  Não me sinto parte de nada disso e tenho medo.
É tanta feiúra no mundo que, sinceramente, não sei se quero fazer parte dele. Se quero me enquadrar, comprar carro, casa, casar, criar filhos e morrer. Se quero conviver com quem acha isso tudo normal, e o pior de tudo, bom.
Concluo com um trecho de Hermann Hesse em “O Lobo da Estepe”:
- (...) Porque estou tão só e amo tão pouco a vida, as pessoas e a mim mesmo quanto você; e como você, não posso levar nada disto a sério. Sempre houve pessoas assim, que exigem da vida o que ela tem de mais alto e não podem conformar-se com sua estupidez e crueldade.
Pois é, não posso me conformar. Vou ali comprar um raminho de miosótis.

2 comentários:

  1. É um prazer ler seu texto, querida! A sociedade possui um conceito de sucesso que considero equivocado, apenas para satisfazer as necessidades do sistema e do mercado. O ser humano vem perdendo cada dia mais seu valor como ser moral e social. Vivemos realmente num mundo cada vez mais superficial. Portanto foca evidente quão especial é encontrat pessoas com um pensamento como o seu. Ótimo texto!

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  2. Assino embaixo, o termo cunhado pelo Professor Hermógenes serve bem para descrever o homem atual "normótico", a doença de ser normal em uma sociedade caótica.

    "Hoje, do jeito que a coisa está, fazer direito o que a gente faz é um ato de defesa pessoal. Eu toco pra quem quer preservar valores civilizatórios. Porque eu sinto que estamos numa nova idade média em que há uma minoria muito pequena de gente que defende um núcleo de valores civilizados. E uma vasta maioria de gente que só está vivo pra consumir e dar manutenção à própria vida."

    Fábio Zanon

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