segunda-feira, 17 de outubro de 2011

Do Homem Trágico, por Thomas Wolfe

Trechos brilhantes do Wolfe. É difícil selecionar trechos de obras que tem uma intenção e um sentido maior em sua totalidade. Tenho mania de grifar trechos de livros e neste caso com Wolfe, assim como com o Tratado do Lobo da Estepe em O Lobo da Estepe do Hesse me pego grifando páginas inteiras. Enfim, tentei me prender ao tema do homem trágico nesta seleção.

Dedico a quem também tem o caos dentro de si.
Para viver sozinho como tenho vivido, um homem deveria ter a confiança em Deus, a fé tranqüila de um santo monástico, a invencibilidade implacável de Gibraltar. Sem isto, há épocas em que qualquer coisa, tudo, os incidentes mais triviais, as palavras mais casuais conseguem num instante privar-me de minha couraça, enfraquecer minha mão, apertar meu coração num terror gélido, encher minhas entranhas com a substância cinzenta da impotência arrepiante.
Van Gogh
Às vezes não passa de uma sombra cruzando o sol; às vezes nada é senão a luz tórrida e
turva de agosto, ou a feiúra despojada e o decoro sórdido das ruas do Brooklyn, esmaecendo na paisagem enfadonha daquela luz turva, e evocando a miséria insuportável de prostitutas incontáveis e vidas indefiníveis. Às vezes é apenas o horror estéril do concreto cru, ou então o calor chispando nos milhões de carros que passam disparados pelas ruas tórridas, ou ainda os
monótonos terrenos de estacionamentos, cobertos de escória de hulha, ou o estrondo violento, a balbúrdia da Ferrovia Elevada, ou a multidão de gente que caminha pela terra, avançando sempre, numa fúria exacerbada, indo apressada para lugar nenhum.”
“Pode ainda ser apenas uma frase, um olhar, um gesto. Pode ser a fria e desdenhosa inclinação de cabeça que um almofadinha contido e afetado da Park Avenue dispensa quando lhe apresentam alguém, como se para dizer: “Você é um nada”. Ou pode ser também uma referência sarcástica, um repúdio por parte de um crítico, numa revista semanal da classe alta. Ou ainda uma carta de uma mulher dizendo que estou perdido e arruinado, que meu talento desapareceu, todos os meus esforços são falsos e inúteis – só porque renunciei à verdade, à
visão de mundo e à realidade que tão maravilhosamente pertencem a ela.
E às vezes é menos que tudo isso – nada que eu possa ver, tocar, escutar ou definitivamente recordar. Pode ser tão vago quanto uma espécie de horrenda atmosfera da alma, sutilmente composta de toda a fome e fúria, de todo o desejo impossível que minha vida já experimentou. Pode, também, ser uma lembrança meio esquecida do vermelho frio e pálido das tardes de domingo de inverno em Cambridge; e de um rosto lívido, estético e sensível, que despertou minha atenção por seu discurso sincero naquela mesma tarde de domingo em Cambridge, dizendo-me que todas as minhas esperanças da juventude eram ilusões lamentáveis, e que minha vida inteira resultaria em nada, enquanto o vermelho da luz pálida de março refletia-se no rosto lívido com uma impotência desoladora, extinguindo instantaneamente de meu sangue todas as paixões da juventude.”
Sob a evocação dessas luzes e dessas atmosferas, dessas palavras frias e desdenhosas, dessa gente cheia de escárnio e afetação, toda a música e alegria do dia esvai-se como uma vela apagada, a esperança me parece perdida para sempre, e toda a verdade que eu já tenha descoberto e conhecido parece-me falsa. Num momento como esse o homem solitário sente que toda a evidência de seus próprios sentidos o traiu, e que nada vive ou se move na terra a não ser criaturas da morte-em-vida – aquelas de corações frios e apertados, de rins doentios, que para sempre existem no vermelho pálido da luz de março e das tardes de domingo.”
(…)
Então de repente, um dia, por nenhuma razão aparente, sua fé e sua confiança na vida renascem numa maré enchente. Despertam nele com uma força jubilante e invencível, escancarando uma janela na vasta parede do mundo, restaurando tudo em formas de um brilho imortal. Miraculosamente restabelecido e seguro de si mesmo, ele se lança de novo na lida triunfante da criação. Toda a sua velha força lhe pertence de novo: ele sabe o que sabe, ele é o que é, ele encontrou o que encontrou. Vai dizer a verdade que está dentro dele, vai dizê-la nem que o mundo inteiro a negue, afirmá-la nem que um milhão de homens gritem que ela é falsa.
(...)
O fato é este: o homem solitário, que é também o homem trágico, é invariavelmente o homem que mais ama a vida – ou seja, é o homem feliz. Nessas declarações não há paradoxo algum. Uma condição implica na outra, e a torna necessária.
Não há nada de estranho ou curioso nisto, há somente o que é inevitável e correto. Pois o escritor trágico sabe que a felicidade está enraizada no coração da tristeza, que o êxtase brota do súbito filete rubro da dor, que a punhalada do desejo insuportável e a efêmera e violenta glória da posse penetram com maior intensidade ainda no instante mesmo da maior vitória do homem, pelo sentido premonitório da perda e da morte. Visto e sentido dessa forma, o melhor e o pior que o coração humano pode conhecer são meramente aspectos diferentes da mesma coisa, entrelaçados na trágica teia da vida.
(...)
É o sentido da morte e da solidão, o conhecimento da fugacidade de seus dias, e o enorme fardo ameaçador de sua tristeza, que cresce sempre, que nunca cessa, o que torna a felicidade gloriosa, trágica e absolutamente preciosa para um homem como Jó. A beleza vem e passa, perde-se no momento em que a tocamos, não pode ser detida ou mantida mais do que se pode deter um rio que corre. A partir dessa dor da perda, do êxtase amargo da fugacidade das coisas, da glória deste momento único, é que o escritor trágico compõe um cântico de felicidade. Pelo menos isto ele pode guardar e estimar para sempre. Seu cântico é cheio de lamento porque ele sabe que a felicidade é fugidia, que se vai no instante em que é possuída, daí ser tão preciosa, retirando sua glória maior das próprias coisas que a limitam e destroem.”
Thomas Wolfe, O Menino Perdido e Outros Contos (1937)

Um comentário:

  1. olha, confesso: a grandeza desse infindável mundo virtual me surpreende a todo instante, mesmo quando dele me canso. entre alguns tropeços despropositados, ele (esse mundo abstrato) acabou me trazendo até aqui. até agora, ainda não consegui parar de ler seus textos, que são densos, intensos e aprisionadores, como que um próprio espelho!!
    eu estava aguardando um melhor momento pra opinar, mas a vontade veio com a frase: "Dedico a quem tem o caos dentro de si." e com essa foto, então!!!
    andava meio muito cansado desse mundo virtual, que, de belo, pra mim, ficou enfadonho e repetitivo. fez, até, que eu me desfizesse de um primeiro blog que tive o: 'não está em mim me retirar'. foi uma experiência muito boa, intensa também. fez com que eu organizasse algumas ideias antigas e resgatasse alguns pensamentos perdidos; mas, como seu próprio tempo se esgotara, abri mão dele. já andava desanimado de escrever e pensando em apagar meu outro blog (seção 8 - esse voltado pra um determinado objetivo, totalmente diverso daquele outro), só que, agora, não só tenho vontade de malhar o teclado, como, também, reviver o primeiro! vou continuar lendo aqui... mas, escreva... escreva mais, porque vc fala como se fosse pra mim e, assim, eu me ouço mais fácil! forte abraço, força e fé sempre pelo caminho!

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