quinta-feira, 13 de outubro de 2011

Garimpando livros

O dia amanheceu chuvoso na terça-feira e eu acordei com uma missão: garimpar livros nos sebos do centro do Rio. Levantei e lá fui eu, munida de guarda-chuva e perdida como uma bala. Não consegui me achar no meu mapa rabiscado: parei então desnorteada numa padaria quase em frente ao Theatro Municipal e pedi à garçonete um queijo-quente e uma informação.
- Iiiih, moça...é longe, viu! – ela disse, mas me orientou mesmo assim.
Segui o caminho indicado de ruas cheias de lama e poças d’água e cheguei finalmente à Avenida Passos. Logo do início da avenida já pude avistar uns quatro sebos. Entrei no primeiro que vi e deixei o cheiro de livros antigos encher meus pulmões, o que despertou com entusiasmo tanto a minha euforia quanto a minha rinite alérgica.
 Enfrentando a barreira invisível de ácaros e o que mais houvesse naquele ar pesado, entrei, pois, com a esperança de achar um pedacinho da minha alma dobrado como um bilhete dentro de um daqueles livros empoeirados. Fui direto ao que interessava: às prateleiras de literatura estrangeira. Um belo funcionário alto e ruivo me indicou o caminho. Fui guiada quase que por uma força maior à letra H. Já que o dinheiro era curto demais para escolhas tolas, resolvi buscar um clássico de Hesse, como Demian ou O Lobo da Estepe, ambos já lidos, o primeiro nunca adquirido e o segundo perdido numa dessas “emprestâncias” da vida. Antes o gosto familiar de uma boa releitura à amarga supresa de uma leitura ruim, e para dizer a verdade eu não estou numa época boa para experimentar coisa alguma.
Pulei pra letra K. Pensei em pegar um Kafka. Quase me decidi por Cartas à Milena. Fiquei ainda apaixonada por um livro de contos de Kafka ilustrados por Nikolaus Heidelbach, Oportunidade para um pequeno desespero. Ele une duas coisas que eu amo: Kafka e ilustrações dark.

Um trechinho da resenha: No livro “Franz Kafka – Oportunidade para um Pequeno Desespero”, Heidelbach selecionou as histórias entre os diários e textos de Franz Kafka. Suas ilustrações comentam com humor o absurdo da aparente normalidade da existência humana que Kafka expressou em sua obra. Mas que achado interessante! Pena que era um exemplar novo e custava o olho da cara, então entrou pra wishlist do mês que vem.

Acabei escolhendo  Demian, do Hesse. O belo funcionário olhou pro exemplar na minha mão e deu um enome sorriso, dizendo: - Demian é ótimo! – como quem também fosse um grande admirador de Hesse ou simplesmente estivesse se esforçando para vender o livro.
Concordei com ele e disse que já o tinha lido, mas queria levá-lo para minha coleção, e em seguida perguntei pelo Lobo.
- Ah, o Lobo! – disse ele – Esse é difícil de achar, todos procuram por ele! Mas vou procurar nos nossos registros.
Ele ditou para outra funcionária “O Lobo da Estepe” para que ela procurasse nos arquivos do sebo, o que me mostrou que sim, ele realmente conhecia Hesse e não queria tão somente vender o livro. Sorri.
O cheiro de chuva que vinha de fora se misturava ao cheiro de mofo de dentro. Umidade e poeira, ahá, prato feito para a minha alergia. Paguei pelo Demian e saí daquele local antes que sufocasse de vez, e foi no sebo da frente que achei inúmeros exemplares de Hesse, entre eles um Lobo da Estepe exatamente igual ao que eu tinha antes. Me emocionei na hora. Pensei na dedicatória do meu livro perdido e senti um vazio enorme. Não, não vai ser a mesma coisa.
Foi subitamente, como um rio que as margens acabam de ceder e águas se espalham por todo o campo”. Fiquei ali, com o livro na mão por uns minutos, sem me mover. Aquele livro tinha sido presente de aniversário do não-dia, e desde aquele dia “intimamente, na alma, aquele homem nos perturbou e prejudicou, e, a bem dizer, até hoje não consegui me libertar dele”. Me refiro com aquele homem ao Hesse, ao Lobo e à pessoa que me presenteou o Lobo, os quais no dia 15 de março de 2006 entraram na minha vida e nunca mais saíram dela.
Voltei de metrô mergulhada no Lobo, como se aquelas linhas fizessem parte de mim, as quais porém eu nunca ousaria escrever por contarem uma verdade que eu mal poderia aguentar.
Garimpar livros não é tarefa fácil. Há de se enveredar entre milhares de títulos, seguindo pistas de bons autores, de indicações ou simplesmente de um bom título ou trecho interessante, ou ainda aventurar-se seguindo pista nenhuma, entregando-se a um exemplar desconhecido de uma história qualquer. Mas acredito que isso tudo no final é besteira, pois são os livros que nos escolhem. E o Lobo me escolheu nesse dia, mais forte ainda do que antes. Entrei nele como em um transe, e pretendo ler e reler cada linha até absorver o sentido completo de tudo o que ali está.
Já havia advertido Hesse: Só para loucos.


Trechos de O Lobo da Estepe de Hermann Hesse e A Valsa dos Adeuses de Milan Kundera utilizados no texto.

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