segunda-feira, 14 de novembro de 2011

A escova e o esquecimento

Laura enfia na mochila algumas roupas amassadas. Pega a primeira blusa que vê pela frente, a calça jogada no sofá. Mais duas ou três peças de roupa. É, deve dar. Enquanto arruma o microcosmos de caos que levará nas costas pelos próximos dias, meio que anestesiada, inicia consigo mesma um diálogo mental, procurando se convencer do necessário.

- Medo de sofrer? Pra quê?! Eu tenho a capacidade de me reerguer e começar de novo. E como tenho! Sei ligar e desligar o botão do sentir quando me convém. Sei usar o narcótico natural do distanciamento, do sumir pra qualquer lugar pra me encontrar de novo, renovada. Eu sei esquecer.

Enquanto tenta acreditar no que diz e repete a si mesma, Laura procura a escova. Revira a montanha de roupas emboladas no armário, os livros pelo chão. Sabia que devia ter arrumado o quarto antes. Mas se perdoa logo em seguida sabendo que não tivera forças; que nos últimos dias fora assaltada pelo desespero, e vê que tivera trabalho demais tentando se manter sã e respirando pra tentar arrumar qualquer coisa do lado de fora dela mesma.

Pensa no trabalho que dá pegar o caminho errado. Às vezes seria preciso ter a humildade de reconhecer que, por mais que ela almeje, certas coisas não são para ela. Grandes riscos, montanhas-russas emocionais, coisas meia-boca, decisões meio-acertadas, longas pausas de silêncio; não, nada disso era para Laura. Ela se irrita com a falta de juízo e de escova.

Tateando atrás da pilha de livros ela acha fotos antigas. Aquelas pessoas, aqueles momentos trazem lembranças mal-vindas do tanto de estrada que ela já havia percorrido. E muita lembrança cansa, enjoa. Laura percebe então que já havia tido experiências demais, e com isso acabou por desenvolver a felicidade ou a infelicidade de prever. 

Constata então que não se trata mais de medo, mas de preguiça. Já tinha vivido coisas demais para o seu gosto; queria apagar metade daquelas memórias. Repeti-las seria viver duas vezes, e uma vida só já é coisa demais.

Tantas experiências repletas de inutilidade! Tanto e tão pouco. Montanhas de migalhas aglomeradas, e migalhas são para ratos. Como pode o ideal de felicidade ser maior que a felicidade em si? A velha fábula da felicidade que é contada e recontada milhões de vezes e envolve a realidade em névoa.

Laura decide então esquecer as fábulas. Esquecer todas as coisas inúteis. Deixar a tela branca tomar conta. Olha para o seu próprio rosto refletido no espelho e brinca, apática, de não saber quem ela é. Olha seus traços como se nunca antes os tivesse notado, e sente estranheza. Percebe que, se tinha permanecido jovem, não fora por milagre ou resistência, mas sim pela enorme capacidade que tinha de esquecer. Que o riso leve das crianças é fruto das poucas memórias que carregam.

Lembra-se então, de repente, de quando havia visto a escova pela última vez. Vai até o banheiro e depara-se com ela onde sempre estivera e deveria estar: em cima da pia. É, deve ser preciso esquecer do caos para se lembrar do óbvio, pensa, rindo para si mesma.

Joga a escova na mochila, coloca a mochila nas costas e dá as costas para o seu quarto. Um quarto de hora e está na estrada. É uma nova jornada começando. Ela está quase leve, leva pouco peso nos ombros e promete observar as placas com atenção. E repete para si mesma mais uma vez, para lembrar: eu sei esquecer.

The Persistence of Memory by Salvador Dali


2 comentários:

  1. :D
    Saber esquecer sem dúvida é uma dádiva!
    Que a Laura tenha uma viagem maravilhosa e que as muitas alegrias sejam uma constante para ela em sua Estrada!

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  2. A Laura agradece e manda lembranças! ;)

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