segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Venezas de merda

É, perdi o sono mais uma vez. Mas já que não teve jeito fui fazer algo produtivo e ler, e acabei achando esse trecho grifado num dos livros da minha fantástica coleção kunderística:

"As privadas dos banheiros modernos se erguem do chão como a flor branca do nenúfar. O arquiteto faz o impossível para que o corpo esqueça sua miséria e para que o homem ignore o que acontece com os dejetos de suas entranhas quando a água da descarga os expulsa gorgolejando cano abaixo. Os canos dos esgotos, ainda que seus tentáculos cheguem até nossos apartamentos, são cuidadosamente escondidos de nossos olhares e nada sabemos acerca dessas invisíveis Venezas de merda sobre as quais estão construídos nossos banheiros, nossos quartos de dormir, nossos salões de festas e nossos parlamentos."

Milan Kundera - A insustentável leveza do ser.

Às vezes paro pra pensar no engenhoso sistema de esgotos que “embeleza” as nossas cidades e pra variar não tenho como não deixar meu pensamento ir além. Posso ser pessimista hoje? Então tá.

Penso na hipocrisia da nossa sociedade que esconde a Veneza de merda das suas mentes e faz um esforço descomunal pra viver uma vida de aparências bem bonita, correta e heróica. Todos expondo felizes suas privadas pensantes. Não canso de estranhar, de não fazer parte, de não entender o modo como as coisas funcionam. Dizer a verdade é uma vergonha. Ser humano é ridículo. Estar triste é absurdo. Sentir dor é sinal de fraqueza. Desrespeito é sinal de poder. Pra mim os canos dos esgotos estão expostos por todos os lados.

Não, eu não me sinto melhor do que ninguém. Feliz é quem não se incomoda e se sente parte dessa família universal dos "bons modos". Já eu me sinto vivendo uma piada contada mil vezes. No início tinha até graça, mas e agora? Está cada vez mais difícil dar o sorrisinho amarelo nosso de cada dia. Eu tinha sonhos normais, via graça e até gostava de pertencer a tudo isso. Acreditava nos mais velhos quando diziam que esse era o único caminho. Em que momento eu deixei de fazer parte? Eu não sei dizer. Minha tela cresceu e não cabe mais nessa moldura. Talvez acabe indo por água abaixo. Ou todos nós. Talvez o grande arquiteto puxe a descarga a qualquer momento.

Não sei pra que lado fugir. Sigo o rebanho ou fico à margem? Aceito sugestões.

A flor de nenúfar. Fiquei curiosa e fui procurar.


Um comentário:

  1. “Enter through the narrow gate. For wide is the gate and broad is the road that leads to destruction, and many enter through it. But small is the gate and narrow the road that leads to life, and only a few find it."

    :)

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